“Reabilitando Vidas”: o desafio da Odontologia em pacientes oncológicos
Paulo Kano (à dir.) lidera o projeto “Reabilitando Vidas”.

“Reabilitando Vidas”: o desafio da Odontologia em pacientes oncológicos

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Projeto “Reabilitando Vidas” busca integração entre médicos e cirurgiões-dentistas para definir protocolos e devolver dignidade e qualidade de vida aos pacientes.

Um jantar organizado pela Sociedade Brasileira de Odontologia Digital (SBODigital), no Terraço Itália – tradicional restaurante no Centro de São Paulo –, reuniu mais de 90 convidados, entre cirurgiões-dentistas, técnicos em Prótese Dentária, autoridades e representantes do Conselho Federal de Odontologia (CFO) e Conselhos Regionais de diversas partes do País. O motivo era nobre: apresentar o projeto “Reabilitando Vidas”, liderado pelos cirurgiões-dentistas Paulo Kano (São Paulo, SP) e Henrique Nakamá (Londrina, PR), com o propósito de discutir, avaliar e propor novos caminhos para a participação da Odontologia na reabilitação orofacial de pacientes oncológicos.

O jantar aconteceu no mesmo dia da abertura do Ciosp (Congresso Internacional de Odontologia de São Paulo), realizado no final do mês de julho, aproveitando a presença de grandes nomes da Odontologia na cidade de São Paulo. O intuito era de reverberar a proposta de um novo protocolo que possibilite maior qualidade de vida aos pacientes após cirurgias para tratamento de câncer bucal e orofaringe, aumentando a participação da Odontologia nesse processo.

“Nas cirurgias oncológicas, o médico tem por princípio obter a cura do paciente, retirando a área afetada, que normalmente implica em mutilação de tecido ósseo, causando uma lesão irreversível ao paciente. Ele, de fato, pode ficar curado do câncer; entretanto, ao não conseguir mais se alimentar normalmente, entra em um processo depressivo, definha, não se reinsere na sociedade e não tem uma qualidade de vida digna”, observa Paulo Kano.

Segundo dados do Instituto Nacional do Câncer (Inca), cada ano do triênio 2020/2022 terá o surgimento de 15.190 novos casos de câncer bucal e de orofaringe no País, sendo que um quarto destes em pessoas com menos de 55 anos.

“Atualmente, a Odontologia Hospitalar atua nos procedimentos bucomaxilofaciais somente após as cirurgias, fazendo a reabilitação oral depois que a região já está mutilada, uma vez que as intervenções cirúrgicas são feitas pelos médicos, que não têm o mesmo conhecimento que os cirurgiões-dentistas da anatomia intraoral, e fazem grandes acessos externos para analisar a área a ser operada, o que também resulta em cicatrizes enormes”, explica Kano.

Ele chama atenção para o fato de os especialistas em Bucomaxilofacial não participarem do planejamento e nem do procedimento cirúrgico. Em sua opinião, isso faria toda a diferença, uma vez que esses profissionais podem lançar mão de toda a tecnologia digital disponível, como escaneamento intraoral, cirurgia guiada e técnicas minimamente invasivas de reabilitação para que o paciente enfrente o processo de retirada do tecido comprometido pelo câncer sem resultar em uma lesão irreversível e incapacitante após a cirurgia.

A proposta do projeto “Reabilitando Vidas” é abrir a discussão, primeiramente com a classe odontológica – e, posteriormente, com a classe médica – sobre a importância de uma atuação multidisciplinar no tratamento desses pacientes, de forma que os profissionais da Odontologia possam participar ativamente do planejamento cirúrgico.

“Quando a pessoa passa por uma cirurgia oncológica de orofaringe, o cirurgião-dentista hospitalar fica responsável por fazer os curativos e o acompanhamento pós-cirúrgico até que o paciente receba alta. Em geral, ele precisa completar o tratamento com sessões de quimioterapia ou radioterapia, em que ocorrem lesões teciduais que podem favorecer a ação bacteriana, causando mucosites. E soma-se a isso o fato de que as mutilações dificultam a higiene oral”, descreve Paulo Kano.

Com a participação de profissionais da Odontologia nesses planejamentos cirúrgicos, a proposta dos especialistas é de fazer uma guia de trava para determinar onde o cirurgião fará o corte da área lesionada, juntamente com uma área de segurança. “O acesso é feito internamente e, com a guia e uma serra elétrica hospitalar, é possível cortar o osso, e a área recortada recebe uma prótese ou implante, planejados anteriormente, com o uso de biomateriais, sem a debilitação de toda a face do paciente”, sugere Kano.

O projeto “Reabilitando Vidas” é amplo e não trata apenas da questão técnica dos procedimentos cirúrgicos, mas da importância de uma atuação multidisciplinar. Dessa forma, os procedimentos não seriam realizados isoladamente, por um grupo pequeno de pessoas ou por poucas instituições hospitalares que acolham a ideia, mas esse conhecimento seria multiplicado.

Kano justifica a reunião dos mais importantes players da Odontologia brasileira para a apresentação da proposta, que prevê ainda a existência de parâmetros legais que deem suporte aos profissionais de Odontologia para essa atuação.

“A área médica é separada da odontológica, e não há uma profissão ou especialização de coafinidades. Daí a importância de envolver as sociedades correspondentes para o estabelecimento de novos protocolos, porque atualmente o cirurgião-dentista não está legalmente autorizado a atuar na área médica em nenhum lugar do mundo”, ressalta.

Projeto-piloto

Paulo Kano conta que a ideia do projeto surgiu há cerca de três anos, quando ele foi procurado por um hospital de Singapura, que buscava especialistas em processos digitais para reabilitação estética no tratamento de pacientes oncológicos. Ao explicar que isso não era possível após cirurgias mutiladoras, iniciou-se a discussão sobre o papel do cirurgião-dentista nos processos pré-operatórios.

Após apresentar a ideia em uma de suas palestras, Paulo Kano conheceu a cirurgiã-dentista Teca Teixeira, de Sorocaba (SP), que levou a proposta para o diretor da Santa Casa de Misericórdia da cidade, Padre Flávio Jorge Miguel Junior. Ele aceitou acolher o projeto, autorizando a atuação de Paulo Kano e sua equipe nos processos de planejamento e execução das cirurgias oncológicas bucais e orofaciais.

A interação acontece como objeto de pesquisa e desenvolvimento, que resultará em estudos científicos que servirão de suporte para a viabilização do projeto em âmbito nacional para um trabalho integrado com a medicina. “É uma união em benefício do paciente”, finaliza Henrique Nakamá, que em agosto deste ano assumiu a presidência da SBODigital, anteriormente presidida por Paulo Kano.