O trabalho inédito de um grupo de cirurgiões-dentistas cientistas que desenvolvem biomaterial adicionado de células-tronco para a regeneração de tecidos.
Em 2021, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) publicou o marco regulatório formado por Resoluções da Diretoria Colegiada (RDC), estabelecendo parâmetros para o uso de terapias celulares em humanos no Brasil. As RDCs 508/2021, 506/2021 e 505/2021 dispõem sobre boas práticas em células humanas para uso terapêutico e pesquisa clínicas, estabelecem regras para a realização de ensaios clínicos com produto de terapia avançada investigacional no Brasil e dispõem sobre o registro de produto de terapia avançada.
A Anvisa descreve que “os produtos de terapia avançada são produtos biológicos, utilizados com fins terapêuticos, obtidos a partir de células e tecidos humanos que foram submetidos a um processo de fabricação; ou produtos que consistem em ácidos nucleicos recombinantes e que têm como objetivo regular, reparar, substituir, adicionar ou deletar uma sequência genética ou modificar a expressão de um gene”.
O tema ainda é recente na comunidade científica, mas tem revolucionado as pesquisas sobre regeneração de tecidos, mostrando-se uma solução tecnológica promissora para a recuperação de lesões graves de pele, osso e outros tecidos do corpo humano, podendo garantir sobrevida em casos anteriormente sem solução e promover qualidade de vida a pessoas com condições de saúde muito comprometidas por doenças ou acidentes mutiladores.
A Medicina vem estudando e aplicando técnicas de terapias gênicas e celulares com sucesso há mais tempo, e a Odontologia começa a ocupar esse espaço de pesquisa aos poucos, ainda sem muita participação, mas já com estudos importantes em andamento, promissores e que contam com o apoio do CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico) e Fapesp (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo). Um destes trabalhos tem sido desenvolvido pela equipe do cirurgião-dentista Vinicius Marchiori, implantodontista especializado em Biologia celular, Biologia molecular e Terapia gênica, e criador da empresa Revolugenix, em 2011, para o desenvolvimento de terapias celulares avançadas.
Marchiori fez mestrado em Laser no Ipen (Instituto de Pesquisas Energéticas e Nucleares) utilizando células-tronco de polpa de dente, irradiando-as e fazendo testes genéticos com o intuito de diferenciá-las para células de osso, obtendo sucesso nos resultados. “Daquela época para frente, eu resolvi que precisaria montar uma empresa para essa tecnologia chegar aos pacientes da Odontologia”, diz ele.
“Não é uma área muito desenvolvida na Odontologia brasileira. O clínico normalmente aplica as tecnologias, mas não costuma desenvolvê-las. Creio que nosso principal mérito nesse tempo todo de projeto é fazer essa ponte entre a Odontologia e a biologia molecular, gênica e a terapia celular”, declara.
A empresa foi aberta para desenvolver um biomaterial, solicitando verba para o CNPq e Fapesp. Apesar de serem processos demorados no Brasil, o projeto conseguiu o apoio das entidades, que aportaram aproximadamente R$ 4 milhões para o seu desenvolvimento inicial. “Com essa verba, até agora conseguimos fazer testes pré-clínicos em animais, que é obrigatório pela Anvisa, com aprovação em oito testes feitos pela empresa ALS Global, certificada pela entidade e reconhecida pelo FDA (Food and Drug Administration, dos Estados Unidos) e pela Comunidade Europeia. Estes testes são fundamentais para certificar que o material é seguro para iniciar a fase de testes clínicos”, declara.
O biomaterial é feito à base de colágeno bovino, purificado e transformado em um gel que é reticulado (endurecido) para servir de base para as células-tronco. Essa reticulação é feita com alguns produtos que devem ser eliminados, o que permite neutralizar toda a toxicidade e resíduos que não interessam para o produto. As células-tronco são aplicadas sobre esse material para depois serem utilizadas em humanos.
Marchiori detalha que foram feitos testes de citotoxicidade, genotoxicidade, linfonodo de camundongo, toxicidade oral aguda, toxicidade sistêmica, entre outros, para avaliar a qualidade e biossegurança do material, todos com sucesso. “Uma vez aprovados os testes, estamos aptos a fabricar o material desde que cumprindo boas práticas de fabricação, por meio de uma indústria já certificada, e a partir daí podemos partir para os testes em humanos”, explica.
De acordo com Marchiori, em um edital recente na área de Biotecnologia entre os mais de 600 projetos apresentados ao CNPq, apenas oito foram aprovados, inclusive o realizado em parceria com a empresa Curityba Biotech, dos também cirurgiões-dentistas e pesquisadores Moira Leão e João César Zielak. Este projeto foi o único nesta linha de fomento que obteve aprovação em parceria com uma ICT (Instituição de Ciência e Tecnologia), e não proposto por uma universidade.
Na primeira fase deste projeto, células de cordão umbilical semeadas sobre o material desenvolvido por Marchiori e sua equipe irão compor o produto a ser testado. Ele explica que são células da estrutura do cordão, e não do sangue. Como são células que não despertam reação imune nos pacientes, não é necessário que o material biológico seja da própria pessoa. Isso está sendo desenvolvido para a regeneração de feridas complexas e de difícil cicatrização, como pé diabético, úlceras vasculares, queimaduras extensas e outros tipos de doenças que acarretam perda de pele.
O uso sobre outros tecidos, como osso e gengiva, será testado em outras fases. Ele destaca que cada aplicabilidade precisa passar por testes separadamente, independentemente da tecnologia já ter se provado eficaz sobre outro tipo de material.
As células são colocadas sobre o colágeno, que é um material reabsorvível, por isso se integra no corpo com facilidade e serve de base para a proliferação de novas células, que vão se multiplicando e tomando conta daquele biomaterial, reconstruindo a área lesionada.
“As células-tronco que estão dentro desse colágeno emitem sinalizações entre si, promovendo uma grande capacidade de multiplicação e de se transformarem no tecido afetado, seja osso, pele ou qualquer outro, inclusive gengiva, possibilitando uma cicatrização muito mais rápida do que se fosse utilizado um material biológico do próprio paciente”, explica Marchiori.
“Nós temos mais de um tipo de biomaterial feito com essa base de colágeno purificado. Um deles é como uma esponja, o outro tem uma consistência mais firme que possibilita o uso em gengiva, mas este ainda não entrou em fase de testes em humanos. Neste momento, estamos trabalhando apenas com a reconstrução de pele”, ressalta.
Segundo o implantodontista, a pesquisa se iniciou pela reconstituição da pele porque é menos difícil e porque há um mercado médico e hospitalar muito grande que precisa desse tipo de material, que é extremamente valioso para utilização em casos muito graves. “O uso é justificável porque a pessoa pode morrer se perder muita pele. É o maior órgão do corpo humano”, enfatiza.
Segundo Marchiori, o caminho a ser percorrido agora é longo. O produto será fabricado por uma indústria farmacêutica parceira que seja reconhecida pela Anvisa como um lugar seguro para acolher o processo de produção elaborado e descrito no projeto.
“A Vigilância Sanitária exige uma segurança absoluta sobre a produção deste tipo de material. Terapias deste tipo ainda estão em fase de pesquisa. A Anvisa divulgou, no início da pandemia, uma RDC que determina o que é preciso para aprovar um produto de terapia celular como esse”, detalha. Depois de comprovada a segurança do uso em humanos, ainda de acordo com Marchiori, será possível entregar esse material para diversos grupos de pesquisa, cada um na sua especialidade, podendo determinar para qual fim pode ser melhor utilizado, ampliando as indicações de aplicações clínicas.
O uso na Odontologia
Vinícius Marchiori aponta que o uso do biomaterial pode ser aplicado à Odontologia inicialmente para tecidos moles, e em seguida para regeneração óssea. “É possível também que seja complementar a materiais que já existem no mercado. Hoje em dia, há produtos sintéticos ou não sintéticos e inertes que são muito interessantes, mas para os quais falta vida. Se forem colocadas células vivas dentro desses materiais, é possível usar esse colágeno mais fluido, em vez de somente um sólido”, indica.
A mistura do biomaterial colágeno purificado com as células dá a elas um local de ancoragem e proteção, e é possível inserir nutrientes. Marchiori explica que as células de osso e pele não são como as sanguíneas, que ficam em suspensão em um líquido. São células aderidas que precisam grudar em alguma superfície para proliferar.
A diferença entre o biomaterial com terapia celular avançada e os sintéticos que já estão no mercado é que estes têm um limite de tamanho para crescer. Já na incorporação de células vivas e o colágeno, há uma chance maior de produção de osso. “A célula é uma grande fabricante de moléculas. Então, quando precisamos regenerar um tecido, ele não tem apenas um tipo de molécula ali dentro. Nós fizemos o material com colágeno e também adicionamos alguns outros polímeros e substâncias que podem ajudar na reconstrução do tecido, mas a célula vai produzir uma série de moléculas de adesão ao local. O material inerte vai depender de que as células do paciente entrem no material para proliferar. Essa é a grande diferença”, explica.
Os testes clínicos em humanos passam por uma série de pré-requisitos da Anvisa e precisam seguir um protocolo de procedimentos que englobam desde biossegurança até aprovações no comitê de ética, e que são acompanhados de perto pela coordenadora do projeto, a Dra. Moira Leão. Marchiori diz que o biomaterial já foi testado por outros grupos em universidades e já há outros dispostos a realizar testes clínicos quando forem aprovados. Outras instituições também podem manifestar interesse em participar do programa, uma vez que estejam adequadas às exigências para que isso aconteça. As parcerias científicas são fundamentais para realizar ciência de alta qualidade e de áreas desafiadoras.
A bioimpressão em 3D de tecidos com células também será possível, segundo o pesquisador, que conta que este é um projeto apresentado para uma universidade parceira nos EUA. Agora, eles já estão estruturando essa arte do desenvolvimento.
Vinicius Marchiori relembra que se uniu à também cirurgiã-dentista e pesquisadora Moira Leão na defesa da participação da Odontologia na área das terapias avançadas. Moira comenta que em 2015 o Conselho Federal de Odontologia regulamentou a coleta de células, mas proibiu o uso das terapias avançadas na Odontologia. “Na época, havia uma fala distorcida sobre o que eram as terapias avançadas. Para evitar que a Odontologia seguisse em um caminho errado, principalmente de nomenclatura e entendimento técnico, houve essa proibição. Mas, o uso de material biológico do próprio paciente já é feito há muitos anos na Odontologia.
As definições foram aprimoradas ao longo dos anos, por isso a regulamentação do CFO também deve passar por atualização, pois desde a primeira RDC da Anvisa, em 2011, já surgiram outras, sendo a mais recente a 508/2021”, afirma Moira. O CFO regulamenta o uso de agregados plaquetários autólogos, que é uma modalidade de Odontologia regenerativa que não se enquadra nos termos das terapias avançadas. Trata-se de um uso de células, mas entra no escopo das exceções.
“No uso autólogo, regulamentado pelo CFO, coletamos células de uma pessoa para ela mesma, e no mesmo ato cirúrgico as células são aplicadas no local a ser regenerado”, detalha. “Por outro lado, com as pesquisas estamos caminhando para o uso de células doadas por doadores saudáveis. As células de um PTA (produto de terapia avançada) passam por um processo de multiplicação, isolamento e seleção feito pelo nosso centro de processamento celular, que trabalha com células do tipo mesenquimais de qualquer fonte”, explica Moira.
A descrição científica para células-tronco mesenquimais é de que são células que estão dispersas nos tecidos e que possuem capacidade de proliferação em cultura padrão de laboratório, respondendo aos processos de diferenciação e de leitura de marcadores imunológicos específicos em testes in vitro, o que poderia caracterizá-las como células-tronco. “A coleta, que pode ser feita a partir de cordão umbilical, por exemplo, resulta em uma quantidade sufi ciente para ser levada junto com o arcabouço de colágeno, produzido pela empresa do Vinicius Marchiori.
Esse conjunto de membranas de colágeno e células é o que produz o que chamamos de produto de terapia avançada (PTA)”, diz. De acordo com Moira, quando o paciente precisa de um enxerto em uma grande área, em vez de retirar tecido do próprio corpo, o PTA pode ser usado para regeneração do tecido dessa região lesionada. O procedimento não requer nenhum tipo de compatibilidade sanguínea, como no caso de transplantes de medula óssea, por exemplo.
“As células hematológicas possuem, na sua superfície, antígenos de reconhecimento imunológico. Já as células-tronco do tipo mesenquimais não possuem essas características, o que nos possibilita usá-las de uma pessoa para outra”, afirma. As células do tipo mesenquimal podem ser encontradas na polpa do dente, nos fragmentos ósseos e no saco pericoronário (membrana que envolve os dentes quando estão nascendo).
“Dentro da boca, há várias fontes de células mesenquimais que podem ser utilizadas nesse tipo de terapia”, atesta Moira. A produção e comercialização do biomaterial feito a partir das terapias celulares avançadas só será possível após permissão da Anvisa.
Por enquanto, os cirurgiões-dentistas que desejarem fazer parte da fase de pesquisa em humanos podem entrar em contato com a Revolugenix ou Curityba Biotech para solicitar sua inclusão e participação. Eles deverão passar por um treinamento técnico quando a Anvisa efetuar a liberação para início da fase clínica do projeto. Segundo Moira Leão, isso deve acontecer somente no segundo semestre de 2024.