Odontologia transforma sorrisos e vidas em lugares quase inacessíveis por terra e água

Odontologia transforma sorrisos e vidas em lugares quase inacessíveis por terra e água

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A Sorrisos Brasileiros destaca projetos que nascem da empatia e do amor à profissão e ao próximo

Eles são ocupadíssimos em suas rotinas diárias de trabalho. Lidam com agendas lotadas de atendimento a clientes, além de eventos e diversos outros compromissos profissionais e pessoais, mas foram cooptados pela missão de colocar suas habilidades e recursos a serviço de pessoas que vivem com bem menos do que o necessário para garantir um mínimo de qualidade de vida. Desta forma, levam saúde, autoestima e esperança aos lugares mais distantes do País por meio de projetos de voluntariado que emocionam e servem de inspiração e exemplo de acessibilidade na Odontologia.

A Sorrisos Brasileiros conversou com diretores e responsáveis pelos projetos “Voluntários do Sertão” e “Doutores das Águas”, que têm levado a Odontologia a atravessar rios e terras para atender crianças e adultos carentes.

Voluntários do Sertão

Rogério M. Azevedo é paulistano, formou-se em Odontologia na cidade de Lins e há 17 anos mora em Ribeirão Preto, ambas cidades localizadas no interior de São Paulo, onde tem uma clínica com sua esposa, que também é cirurgiã-dentista. E foi em Ribeirão Preto que ele conheceu o projeto Voluntários do Sertão, criado há 20 anos pelo empresário Doreedson Pereira. Mais conhecido pelo apelido de Dorinho, o hoje bem-sucedido empresário nasceu no sertão da Bahia e, como relata Azevedo, apesar de suas conquistas, nunca perdeu o amor e o contato com suas origens. No ano 2000, Dorinho reuniu alguns amigos e propôs que, juntos, comprassem uma grande quantidade de brinquedos e cestas básicas para distribuir para crianças de várias cidades do sertão baiano, para onde viajaram no avião particular do empresário.

A ação foi se repetindo ao longo dos anos e cresceu, conquistando voluntários de diversas áreas e apoiadores significativos. Hoje leva cerca de 300 voluntários, entre cirurgiões-dentistas, médicos, fisioterapeutas, advogados, seus assistentes, equipe de recreação, cozinheiros e staff de apoio, que passam uma semana por ano em cidades pré-selecionadas localizadas nos recônditos mais distantes do sertão da Bahia, onde atendem milhares de pessoas, alcançando números impressionantes de procedimentos médicos, odontológicos e serviços jurídicos em tempo recorde.

As ações também contam com diversão para as crianças, com atores, palhaços e brinquedos infláveis, além de distribuição de cestas básicas e kits de higiene. Engajado no projeto há cerca de seis anos, Azevedo começou fazendo atendimentos clínicos, atuando hoje em dia como coordenador odontológico. Ele ressalta que não tem nenhum vínculo empregatício ou empresarial com o projeto, trabalhando de forma totalmente altruísta, assim como os outros profissionais que colocam seu tempo, conhecimento e habilidades técnicas à disposição da população extremamente carente dessas cidades.

Azevedo explica que o projeto conta atualmente com apoios importantes, como da Força Aérea Brasileira, que disponibiliza um avião para transportar as centenas de voluntários até os locais onde as ações acontecem.

O especialista explica que o avião pousa no aeroporto mais próximo da cidade escolhida para recebê-los e o restante do trajeto normalmente é feito de ônibus ou em transportes que, muitas vezes, são oferecidos pelas prefeituras das cidades beneficiadas. Além de contar com apoios institucionais de órgãos municipais, estaduais, federais e de empresas parceiras para a logística de hospedagem, alimentação e transporte dos voluntários e dos equipamentos para montagem dos consultórios, grande parte dos custos do projeto é financiada pelo empresário Dorinho.

Segundo Azevedo, antes da chegada do projeto, uma equipe de voluntários vai até as cidades para fazer a triagem dos pacientes que serão atendidos. Na parte odontológica, os procedimentos oferecidos vão desde profilaxias até próteses removíveis, confeccionadas no mesmo dia, e pequenas cirurgias cujos retornos para retirada de pontos acontecem ainda durante a semana da permanência do projeto no local. Os pacientes recebem atendimento completo, muitos passam o dia inteiro nas cadeiras dos cirurgiões-dentistas até a conclusão de todos os procedimentos indicados.

As cidades candidatas a receber o Voluntários do Sertão devem preencher alguns requisitos básicos de infraestrutura de atendimento e para acolher as equipes. Os atendimentos são feitos em carretas adaptadas e que são de propriedade de Dorinho. A edição de 2023 aconteceu em setembro, na cidade de Barra do Choça, e revelou números expressivos.

A carreta da Odontopediatria contou com seis cirurgiões-dentistas e seus assistentes que fizeram 487 atendimentos, resultando em 4.171 procedimentos. Os pacientes adultos somaram 1.082 pessoas atendidas por 22 profissionais, com a realização de 13.559 procedimentos. Tudo isso aconteceu em cinco dias, de segunda a sexta-feira.

Apesar de trabalharem exaustivamente, Azevedo afirma que a satisfação pessoal de todos os voluntários é imensurável. “Impossível não se emocionar com a possibilidade de, além de tratar a saúde bucal dessas pessoas e aliviar suas dores físicas, podermos melhorar a autoestima e promover uma mudança significativa de vida para eles”, finaliza.

As informações sobre como se inscrever para ser um voluntário ou doador do projeto podem ser obtidas no site: www.voluntariosdosertao.com.br.

Doutores das Águas

Cirurgião-dentista há 18 anos, formado pela Unesp de São José dos Campos (SP), Rubens Minoru Hirano é clínico geral, atua como gestor de sua clínica odontológica em São Paulo (SP) e é o coordenador odontológico do projeto Doutores das Águas, que existe há 12 anos e tem como foco a região da Amazônia, levando atendimento às populações ribeirinhas que vivem às margens dos rios Madeira e Sucunduri.

Hirano conta que o projeto nasceu por iniciativa de um grupo de empresários que praticavam pesca esportiva na região e que, constantemente, eram abordados por ribeirinhos que perguntavam se havia médicos entre eles que pudessem prestar algum auxílio a moradores que apresentavam algum problema de saúde. Entre os esportistas estavam os médicos Francisco Leão Junior e Mauro de Almeida Prado, idealizadores do Doutores das Águas, que decidiram reunir profissionais de saúde para levar atendimento àquela população carente que, na maioria das vezes, precisa viajar por dois ou três dias de barco para ter algum acesso a atendimento médico, odontológico e medicamentos.

A primeira expedição aconteceu em 2011 e, desde então, todos os anos os mais de 30 voluntários partem pelos rios a bordo de um barco que transporta, além de médicos e cirurgiões-dentistas, todos os equipamentos e medicamentos utilizados para os atendimentos, além da equipe de recreação para divertir as crianças, camareiras, condutor do barco e cozinheiros responsáveis pela alimentação do time. A embarcação foi construída em 2014 e está completamente adaptada para abrigar os voluntários e a infraestrutura necessária aos atendimentos, graças a doações de empresários que se sensibilizaram com o propósito do projeto.

Durante cerca de um mês, toda essa equipe fica alojada no barco, que conta com cabines e colchonetes para sua hospedagem. Ali, os voluntários também fazem suas refeições e praticam os atendimentos em consultórios médicos e odontológicos que contam com infraestrutura suficiente para procedimentos de baixa e média complexidade, inclusive confecção de próteses móveis.

“Na parte odontológica, contamos com uma equipe de 11 pessoas, sendo quatro cirurgiões-dentistas, dois assistentes de saúde bucal (ASB), quatro protéticos e um gestor”, explica Hirano, dizendo que as expedições acontecem uma vez por ano, normalmente no mês de abril, aproveitando a cheia dos rios para melhor navegabilidade do barco, que busca alcançar os lugares mais distantes. O coordenador odontológico menciona que o projeto se divide em duas etapas.

Na primeira, com 11 dias de duração, o barco parte de Manaus (AM), onde fica aportado. Na segunda, ele segue na direção norte para Roraima. “Os atendimentos são feitos durante o dia, e à noite o barco parte para a próxima comunidade. Chegamos por volta das 6h da manhã, e o barco toca uma buzina para avisar aos moradores”,
detalha.

Segundo Hirano, as comunidades sabem com antecedência sobre o período de passagem do barco e dia exato em que o atendimento será feito em cada uma delas. Os líderes comunitários selecionam as pessoas que precisam de próteses odontológicas e elas são as primeiras a serem atendidas, já que a confecção das peças é feita no mesmo dia. Ou seja, começam a ser moldadas a partir das 6h30 da manhã. Ao longo do dia, são realizadas as provas e ajustes necessários para que as próteses prontas sejam entregues à noite. A quantidade de edêntulos nessas comunidades é alta porque, até o início do projeto, essas pessoas nunca tiveram nenhum tipo de tratamento odontológico.

E quando tinham problemas dentários, a solução era extrair. Hirano afirma que a reabilitação oral proporcionada pelo projeto Doutores das Águas transforma o sorriso e a vida dos ribeirinhos. Estes sobrevivem da pesca e de pequenos plantios para a própria subsistência, e normalmente vivem em situação de extrema pobreza, muitas vezes sem condições mínimas de saneamento básico. Grande parte das casas tem apenas uma lâmpada. Algumas comunidades contam com geradores de energia fornecidos pelo governo federal, mas muitas vezes falta o combustível para funcionamento do equipamento.

A passagem do barco do projeto é motivo de festa para eles. Além dos atendimentos odontológicos e médicos, o projeto também oferece palestras de educação alimentar e de cuidados com a saúde. “Como também passam ‘barcos mercearia’ pelas comunidades, os moradores consomem muitos alimentos industrializados e refrigerantes. Uma das famílias chegava a consumir um quilo de açúcar por dia”, exemplifica Hirano, apontando esse comportamento como um dos motivos dos problemas dentários dessas pessoas.

Dentro do projeto, foi criado o programa “Cárie Zero”, com o objetivo de reduzir a incidência desta doença entre a população. Ele menciona que o projeto ganhou da Colgate um “escovódromo” com oito torneiras, além de kits de higiene bucal, o que tem facilitado muito as orientações sobre escovação, com aulas práticas. “Para motivar as crianças, criamos a Medalha Cárie Zero. Para eles, que na maioria das vezes nunca tiveram nem um brinquedo, é fantástico receberem um prêmio por mérito”, diz.

Com todos os dados de atendimento anotados para que possam parametrizar os resultados e avaliar a evolução dos serviços prestados, os coordenadores do projeto calculam que 30% dos ribeirinhos que atendem com frequência já não têm mais cárie. Desde o início do projeto, em 2011, até hoje, o Doutores das Águas realizou mais de 12.600 atendimentos odontológicos, cerca de 16,7 mil atendimentos médicos e entregou 1.000 próteses removíveis a partir de 2017, quando esse procedimento começou a ser adotado. Em 2023, foram aplicadas mais de 570 vacinas.

Projetos como o Voluntários do Sertão e o Doutores das Águas preenchem uma lacuna enorme de acesso a cuidados básicos de saúde que o poder público não supre. Mesmo que o objetivo principal seja atender a população tão carente de cuidados nos lugares alcançados, não são os sertanejos da Bahia e os ribeirinhos do Amazonas os únicos beneficiados por essas ações. Cada um dos profissionais que doam seu tempo, conhecimento e habilidades técnicas para devolver um mínimo de dignidade a essas pessoas também vive uma experiência de transformação pessoal que os impacta e motiva para a vida toda.