O papel da Odontologia no transplante de medula óssea

O papel da Odontologia no transplante de medula óssea

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Transplante de medula óssea: prevenção contra mucosite oral e outras infecções fazem parte dos cuidados que o profissional da Odontologia deve ter em uma equipe multidisciplinar.


A Odontologia hospitalar vem ganhando cada vez mais espaço e tendo sua importância reconhecida no auxílio ao tratamento de diversas patologias. A atividade ganhou destaque durante a pandemia de Covid-19, especialmente pela atuação dos cirurgiões-dentistas nas UTIs, reduzindo o risco de desenvolvimento de infecções respiratórias nos pacientes internados. Uma das abordagens em que os profissionais da Odontologia têm se destacado como parte importante da equipe multidisciplinar é o transplante de medula óssea, tipo de tratamento aplicado a algumas doenças que afetam as células sanguíneas, como as leucemias e linfomas, em que a medula óssea afetada é substituída por células normais, segundo o Instituto Nacional do Câncer (Inca).

A redução da imunidade dos pacientes ocorre devido às altas doses de quimioterapia às quais são submetidos, e que podem ou não estar associadas à radioterapia de corpo inteiro. “Essa alta dosagem leva à imunossupressão, deixando o paciente suscetível a efeitos colaterais, e a cavidade oral é muito acometida. Esse paciente pode apresentar alteração de paladar, de quantidade e qualidade da saliva, além de ter mais chance de desenvolver infecções oportunistas, uma vez que ficará sem defesa nenhuma. Os neutrófilos serão zerados e ele ficará muito suscetível, e as infecções podem rapidamente se disseminar”, explica Letícia Bezinelli, responsável pelo serviço de Odontologia Hospitalar do Hospital Israelita Albert Einstein e membro da Câmara Técnica de Odontologia Hospitalar do Conselho Regional de Odontologia de São Paulo (Crosp).

Por isso, a especialista reforça a importância do paciente passar por atendimento odontológico e realizar uma adequação do meio bucal antes de iniciar o tratamento médico. “Se o paciente tiver uma doença periodontal em atividade, corre um risco muito maior de disseminação da infecção quando passa pelo transplante”, afirma Letícia, reforçando que qualquer condição de origem pulpar ou periodontal que constitua um reservatório de microrganismos patogênicos representa riscos e favorece infecções.

A profissional explica que dentes com polpa necrosada, abscessos crônicos, bolsas periodontais profundas e restos radiculares são as situações clínicas mais comuns e com maior risco de se tornarem agudas e propensas ao desenvolvimento de infecções bucais que, quando levadas ao limite, podem até resultar em uma interrupção do tratamento oncológico, causando ainda mais prejuízo à saúde do paciente.

A mucosite oral, inflamação da mucosa decorrente das altas doses de quimioterapia associadas à falta de defesa do organismo, é um dos principais efeitos colaterais do tratamento. “O epitélio que reveste a boca vai ficando fino e tornando o ambiente propenso à formação de úlceras, que parecem aftas. Elas vão confluindo e formando úlceras maiores, que acometem toda a língua, mucosa jugal e palato. Nessa condição, o paciente não consegue se alimentar pela boca, apresenta dificuldade de fala, além de dor intensa, e a perda de integridade do tecido se torna uma porta de entrada para infecções”, detalha.

Segundo ela, o acompanhamento diário do paciente pelo cirurgião-dentista permite o controle do biofilme, o tratamento de alterações salivares e o diagnóstico de infecções oportunistas.

Entre os recursos preventivos e tratamento da mucosite oral, Letícia destaca a laserterapia, que faz parte do rol de procedimentos da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS). “Atualmente, o convênio médico cobre a laserterapia no transplante de medula óssea, pois entendeu que isso gera um impacto na saúde e nos custos do tratamento médico. Sendo assim, não há justificativa para não se fazer esse acompanhamento. O que temos que ter são cirurgiões-dentistas capacitados e integrados com a equipe médica e demais áreas da saúde”, alerta.

Letícia afirma que é possível diminuir consideravelmente o risco de mucosite se o procedimento com laser for realizado desde o início do condicionamento do transplante até a “pega” da medula, momento após a transfusão, quando a medula já consegue produzir as células do sangue em quantidades suficientes. “Nosso objetivo é evitar em 100% essa inflamação da mucosa. Se não conseguirmos evitar totalmente, pelo menos é possível diminuir muito a extensão da severidade”, relata.

A especialista aponta que um trabalho publicado em 2022 fez um retrospecto da atuação dos cirurgiões-dentistas no transplante de medula óssea nos últimos 15 anos. O estudo verificou que os cuidados orais e a laserterapia geram impacto na sobrevida dos pacientes, além de colaborar para uma melhora na qualidade de vida.

A especialista alerta que a saúde bucal do doador de medula óssea também precisa estar em dia e sem foco de infecção ativo. Quando o doador é chamado, passa por avaliação odontológica e, se apresentar qualquer irregularidade, deve passar por tratamento antes de prosseguir com a doação.

Habilitação em Odontologia Hospitalar

O cirurgião-dentista Keller De Martini, professor da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), destaca que a Odontologia Hospitalar se tornou uma habilitação reconhecida pelo Conselho Federal de Odontologia a partir da Resolução 162/2015.

Desde então, a Comissão de Odontologia Hospitalar do CFO, dirigida por De Martini, vem normatizando essa área de habilitação por meio de resoluções. “O trabalho da Odontologia Hospitalar ganhou destaque durante a pandemia de Covid-19, mas a atuação dos cirurgiões-dentistas nos hospitais já existe há muito tempo e é de suma importância”, ressalta De Martini.

O CFO vem trabalhando há alguns anos junto ao Ministério da Saúde com o intuito de aprovar o Projeto de Lei Federal 883/2019, que regulamenta a presença de profissionais da Odontologia em Unidades de Terapia Intensiva.

“É um momento muito oportuno para profissionais que se interessam por essa área da Odontologia, e também para os que já atuam nela”, diz De Martini, ressaltando o trabalho gradativo que tem sido feito para a inserção da Odontologia Hospitalar nos cursos de graduação. “No início, a disciplina foi sendo colocada entre as optativas, mas sem levar os alunos para viver a experiência no ambiente hospitalar. Hoje, já conseguimos colocar a habilitação como uma disciplina efetiva em algumas universidades e supervisionar a presença dos alunos em hospitais”, explica.

Ele aponta que há leis aprovadas que regulamentam e determinam o exercício da Odontologia Hospitalar em âmbito municipal e estadual em diferentes parte do Brasil. “Na Universidade Metropolitana de Santos (Unimes), onde eu leciono, já conseguimos colocar alguns alunos trabalhando na Santa Casa da cidade”, diz, destacando que há outros exemplos como esse no País.

“A nossa meta é conseguir contemplar a obrigatoriedade da Odontologia Hospitalar em todos os hospitais, públicos ou privados, levando esse benefício para toda a população, assim como a criação de programas de residência para os alunos e cursos de pós-graduação nessa área”, finaliza.