O dilema dos cirurgiões-dentistas nas redes sociais

O dilema dos cirurgiões-dentistas nas redes sociais

Compartilhar

Quais são os limites da ética na internet, em especial quando envolvem profissionais da Odontologia?

Por Leandro Duarte

As redes sociais se tornaram uma importante ferramenta de marketing, com divulgação de produtos e serviços para diversas finalidades. A realidade não é diferente na Odontologia, com profissionais ávidos por expor procedimentos e tratamentos.

Assim, para ampliar as discussões sobre o combate às fake news e a construção de um espaço solidário em âmbito virtual, a revista Sorrisos Brasileiros conversou com dois cirurgiões-dentistas que há anos se destacam produzindo conteúdos nas mídias sociais especificamente para o segmento odontológico.

O título da matéria faz menção ao famoso documentário de mesmo nome – “O dilema das redes” (Social Dilemma, 2020) –, que analisa o papel das mídias sociais e os danos que elas causam à sociedade. Na Odontologia, o dilema é semelhante. Desde os primórdios da web, com o advento dos blogs, passando pelas plataformas mais antigas, como o Orkut, os cirurgiões-dentistas fincaram suas bandeiras no espaço virtual para trocar experiências e difundir informações, principalmente dicas preventivas.

Com a evolução dessas plataformas, a situação tem saído do controle em muitos aspectos, ao mesmo tempo em que a fiscalização plena é praticamente inviável. Atualmente, o Instagram é a rede que conta com mais profissionais da Odontologia divulgando serviços, fazendo os mais diversos tipos de postagem e também vendendo cursos. Desta forma, surge uma importante pergunta: como traçar a linha tênue entre a propaganda agressiva e a possibilidade de flexibilização dos Conselhos e da própria legislação?

Além de muitos cirurgiões-dentistas extrapolarem o que a própria resolução do Conselho Federal de Odontologia (196/2019) preconiza como uma espécie de cartilha de boas práticas, outro problema grave vem tirando o sono daqueles que lutam para que o saber científico não seja “atropelado” pela sanha do marketing digital em converter vendas de cursos: a adoção de termos e a invenção de procedimentos que deturpam a excelência de especialidades odontológicas consolidadas.

Os exemplos são muitos: “Odontologia integrativa”, “Terapia neural em Odontologia”, “Biocodificação dental”, “Psicogenealogia aplicada à Odontologia”, “Terapia quântica na Odontologia”, entre outros.

O introito foi um pouco longo, mas porque o assunto é de extrema importância e nos encontramos em um tempo-chave para que tais distorções sejam coibidas e punidas severamente. Do contrário, a situação pode sair de controle em função do que as fake news causam quando, em decorrência da enorme adesão, ganham a chancela de informação verdadeira.

Para promover uma discussão e pensar caminhos para coibir e punir os profissionais que agem de má fé nas redes, conversamos com os cirurgiões-dentistas Luiz Rodolfo May dos Santos e Renata Caruso. Eles fazem sucesso entre a classe odontológica, com anos de contribuição para a difusão da boa informação e para a criação de uma rede para que profissionais possam fazer um intercâmbio sadio de conhecimento, com a indicação mútua de seus serviços.

“Se cada um fizer a sua parte de maneira muito correta e muito ética, vai ter espaço para todo mundo. Se o profissional focasse naquilo que realmente estudou, que está embasado cientificamente, não haveria tantos problemas na Odontologia. Hoje em dia, estou nesse patamar de atender por indicação porque, desde recém-formada, eu tinha esse pensamento”, afirma Renata Caruso, especialista em Periodontia e que trabalha com Reabilitação Oral há mais de dez anos em São Paulo.

Ela deu os primeiros passos como produtora de conteúdo em 2015, com o intuito de “simplificar a Odontologia para os pacientes”. Atualmente, ela gere o perfil @docedentista, no Instagram, que conta com mais de 45 mil seguidores.

No caso de Luiz Rodolfo May dos Santos, também especialista em Periodontia e que atua na área de implantes dentários, em São Paulo, o trabalho de influenciador digital tem mais tempo: mais precisamente em 2009, quando criou seu primeiro perfil na rede X, que até pouco tempo se chamava Twitter.

Com conhecimento de causa, ele vê uma série de pontos positivos no fato dos cirurgiões-dentistas conseguirem mostrar seu trabalho para uma grande quantidade de potenciais pacientes e colegas. No entanto, o cenário atual traz uma grande preocupação no que diz respeito à ocupação de território.

“A gente vê os profissionais se digladiando em busca de pacientes nas redes sociais, pois todo mundo está ali no Instagram. Eu observo algo meio predatório em alguns casos. Em outros, é mais uma vitrine. Há muitos cursos ruins que são enganações, cursos de gestão que prometem encher os consultórios e agendas, cursos quânticos etc. Isso é um problema em todas as profissões. São pessoas que têm muitos seguidores e tentam replicar fórmulas de sucesso como se fosse receita de bolo.

A rede traz esse dilema, principalmente o Instagram, que mostra só a parte boa da vida. As pessoas só mostram os bons momentos, o que tem gerado uma onda de ansiedade. Ninguém é superbom todo dia, ninguém tem força de criar conteúdo diariamente. É uma demanda impossível que o algoritmo impõe. E quem não tiver cabeça vai para dentro do buraco”, alertou.

A moda perigosa das nomenclaturas sem critério na Odontologia

Outra preocupação compartilhada pelos dois especialistas, que são parceiros no podcast Podsondar, diz respeito aos nomes de supostos procedimentos inovadores, criados de forma irresponsável como chamariz para novos pacientes com um “verniz” de inovação e resultados surpreendentes.

Para Luiz Rodolfo Santos, a dificuldade de enquadrar os profissionais que, nas palavras dele, “agem como charlatões”, e os desafios de uma fiscalização austera são as maiores dificuldades para coibir essas más ações na área. “Eu diria que hoje a fiscalização é praticamente impossível. Primeiro, porque o time da fiscalização dentro dos conselhos não é grande.

E mesmo com mais fiscalização, a internet é extremamente vasta e a gente conta com várias redes, sites, blogs e stories no Instagram que somem em 24 horas”, relata.

Com relação às nomenclaturas que estão servindo para desinformar, fazer o profissional involuir e cujo único intuito diz respeito a capitalizar com a venda de cursos, há uma em especial que merece atenção maior em comparação às demais, de acordo com o cirurgião-dentista e influenciador digital. “Esse problema da Odontologia biológica é uma causa pessoal minha e de outros colegas. Ela vem se difundindo em ondas, vem em grupos, perfis muito grandes dentro da Odontologia e da Medicina.

O CRO deveria buscar o CRM e fazer uma parceria, inclusive com outros Conselhos, algo que apareça na mídia dizendo que o profissional de saúde que postar algo sobre Odontologia biológica será punido. Se você posta uma informação falsa dessa forma, coloca as pessoas em risco de fazer um tratamento mutilador.

A desinformação pode ter desfechos muito graves”, denuncia Luiz Rodolfo, que também se espanta com o avanço dos adeptos da terapia neural, em que dentes são lavados com soro com a falsa promessa de uma melhora da circulação. “Isso é uma insanidade. Não tem lastro científico nenhum. Uma mistura de curandeirismo, crenças religiosas e holísticas, ideias vindas de uma espécie de seita”, condena.

Renata Caruso vai na mesma linha. Ela também traz mais detalhes de como se dá a deturpação de conceitos com o intuito de gerar essas nomenclaturas sem validação das autarquias odontológicas. “Por exemplo, Odontologia biomimética. Todo cirurgião-dentista é biomimético, pois biomimética é sobre a adesividade. Na verdade, eles usam um termo da Dentística e levam isso como se fosse algo exclusivo e inovador para captar pacientes e cirurgiões-dentistas desinformados. Já os gestores desses cursos ficam mais ricos e poderosos, e cada vez mais espalham esses termos, que atraem novos alunos.

Isso tem se espalhado em uma proporção preocupante”, conta a periodontista, que lamenta o fato de ela e outros colegas, que tentam combater essas práticas de charlatanismo, serem massacrados por essa verdadeira “cruzada” contra as fake news na Odontologia.

Sobre essas ações coordenadas para que os profissionais que combatem esse tipo de desinformação sejam achacados, Renata também demonstra como o discurso é habilidoso, perigoso e covarde. “A gente é visto como o profissional desatualizado. Mas, na verdade, é muito ao contrário, pois nos baseamos em pesquisas e artigos científicos que são sérios. Não adianta a pessoa falar que tem um artigo sobre tal assunto se não tiver um duplo-cego que seja randomizado. Isso é o que a gente tenta passar, principalmente, para os recém-formados, para que eles não sigam essa linha.”

Postagens como “antes e depois”

Pelo menos em um assunto os dois colegas têm posicionamentos divergentes. Liberadas (com regras específicas) pelo Conselho Federal de Odontologia (CFO) em 2019, as postagens com o antes e depois de um tratamento/procedimento geram reações diferentes nos dois influenciadores. Luiz Rodolfo explica a razão de ser contra.

“Eu sempre fui contra, principalmente porque muitos profissionais acabam adulterando fotos e as editam, seja na parte da Harmonização Orofacial ou na Estética. E a gente vê muito exagero, procedimentos desnecessários que criam uma demanda meio maluca com base em faces inexistentes.

Acho que é uma repetição do que vimos na cirurgia plástica dos anos 1980 e 1990. Aquelas pessoas ‘plastificadas’, todas ‘repuxadas’. Parece que isso voltou com tudo na Odontologia, mas com o botox, preenchimento e outras tecnologias. A desfiguração do rosto é a mesma”, opina.

Além de concordar com posts de “antes e depois”, Renata Caruso vai além. “Sou a favor de flexibilizar o ‘antes e depois’ com mais ética, com o paciente autorizando, explicando em todas as fotos que cada procedimento é único, cada resultado é único e particular, e depende de avaliação. Essa parte deveria ser mais flexibilizada”, pondera.

Ansiedade da nova geração de cirurgiões-dentistas preocupa

Outro flagelo das redes sociais diz respeito à ansiedade que as postagens, principalmente no Instagram, causam. As principais vítimas? Os profissionais que chegaram ao mercado há pouco tempo e os que estão prestes a se formar.

“Há uma grande quantidade de dentistas que postam uma vida teoricamente irreal, que só postam o lado bom da Odontologia ou que a superestimam ao mostrar consultórios maravilhosos, casos de reabilitação supercomplexos e profissionais exibindo carrões em viagens. Isso tudo gera uma ansiedade grande nos recém-formados porque eles acham que nunca vão conseguir, que aquilo é outro patamar para eles. E essa ansiedade é muito prejudicial.

Eu recebo muitas mensagens de alunos com crise de ansiedade, depressão, casos de tentativa de suicídio, pois a pessoa fica muito desiludida com a Odontologia ao fazer comparação com essa vida irreal. Há muitos que me agradecem por eu falar da Odontologia de uma forma real, uma realidade árdua e que exige um degrau de cada vez. Ninguém começa ganhando rios de dinheiro, demora muito para isso e esse é o normal”, determina a especialista.

Por fim, a pergunta que tira o sono dos especialistas: como melhorar o espaço virtual onde os profissionais da Odontologia convivem e vendem seus serviços e cursos? Não há uma resposta pronta, mas existem alguns caminhos para amenizar os efeitos danosos vistos atualmente.

“Os nossos governantes precisam acelerar a aprovação de algum tipo de lei que tenha uma certa regulação e para que as pessoas sejam responsáveis pelo que elas postam. Como é muito difícil classificar as fake news, além de muitas defenderem a liberdade total para postar o que quiser, o mundo on-line precisa ser um pouco mais parecido com o mundo off-line. Talvez seja preciso a comunidade da Odontologia discutir a criação de uma agência de checagem de informações”, concluiu o cirurgião-dentista, que também é criador e editor do famoso blog Dicas Odonto, que pode ser acessado através do site (http://www.dicasodonto.com.br) ou perfil do Instagram com mesmo nome (@dicasodonto).