Odontologia brasileira contribui com programas espaciais nos EUA

Odontologia brasileira contribui com programas espaciais nos EUA

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O cirurgião-dentista André Pelegrine desenvolve estudo sobre o uso de células-tronco em ambiente de baixa gravidade, em um laboratório de ciências espaciais localizado na Flórida.

Cirurgião-dentista, professor, com título de doutorado, pós-doutorado, pesquisador e jovem, o brasileiro André Pelegrine está nos Estados Unidos desde janeiro deste ano, onde desenvolve uma pesquisa sobre o uso de células-tronco em um ambiente de microgravidade, no laboratório de ciências espaciais na área do Kennedy Space Center, no estado da Flórida.

Pelegrine é formado em Odontologia pela PUC-Campinas, especializado em Implantodontia e Periodontia, cursou doutorado na Unicamp, pós-doutorado na Unifesp e dá aulas na Universidade São Leopoldo Mandic há mais de 20 anos. De acordo com o profissional, a regeneração tecidual e a reconstrução óssea são condições muito ligadas a ambas especialidades às quais ele se dedica, e foi com o intuito de buscar esse conhecimento específico que ele trilhou toda sua carreira acadêmica.

“Eu sentia necessidade de fazer pesquisa na área de regeneração óssea e sempre fui um entusiasta dos estudos sobre células-tronco. Com isso, realizei estudos sobre medula óssea em modelo animal durante o mestrado. Já no doutorado, pude estender a pesquisa para o trabalho em humanos porque tive a oportunidade de atender no Hemocentro da Unicamp, onde trabalhamos com reconstrução alveolar”, descreve.

Nessa época, ele conta que ainda não estavam isolando as células-tronco, mas apenas concentrando e centrifugando o material. Já no pós-doutorado, que cursou na Unifesp, iniciou o trabalho de cultivo e isolamento de células-tronco. O ano era 2013 e essa pesquisa resultou no livro “Células-tronco em Implantodontia”, da Editora Napoleão, de sua autoria em parceria com os colegas Antonio Carlos Aloise e Carlos Eduardo Sorgi da Costa, também cirurgiõesdentistas.

Um ano após a publicação do livro, a R-Crio inaugurou seu laboratório de criopreservação de células-tronco em Campinas (SP), considerado até hoje o maior da América Latina. Procurado pelo presidente do laboratório – o também cirurgião-dentista e pesquisador José Ricardo Muniz Ferreira –, André Pelegrine iniciou uma parceria de pesquisa com a empresa. “Essa parceria, em conjunto com a São Leopoldo Mandic, resultou na minha vinda para os Estados Unidos, onde trabalho no escritório da R-Crio que fica dentro do Kennedy Space Center, no SLSL – Space Life Sciences Lab (Laboratório de Ciências da Vida), instituto dedicado a estudos científicos e de engenharia para suporte ao programa comercial espacial norte-americano.

Há cerca de dois anos, através da colaboração internacional com o KSCIA International Space Academy, a R-Crio teve a possibilidade de montar seu escritório no SLSL, com o objetivo de implantar um estudo sobre o comportamento das células-tronco em um ambiente de microgravidade. Na ocasião, Pelegrine e a empresa haviam recém-gerado uma patente com a metodologia de obtenção de células-tronco provenientes do periósteo do palato (membrana que envolve o osso do céu da boca), possibilitando a coleta deste material de forma menos invasiva do que a partir da medula óssea, por exemplo, que implica na perfuração do osso da bacia. “O instrumento que utilizamos para remoção do periósteo chama-se ‘punch’ e tem apenas 3 mm de diâmetro. Aplicamos uma anestesia local para coleta do tecido, e o procedimento é inclusive menos invasivo do que a extração de um dente de leite”, compara.

Após o registro da patente do método, surgiu o convite para ampliação dos estudos sobre o comportamento das células-tronco em um ambiente microgravitacional no SLSL. A R-Crio só conseguiu esse espaço para implantar um escritório graças ao ótimo relacionamento internacional da empresa, que gerou memorandos assinados por fundações importantes, como a Michaelis Foundation e o KSCIA International Space Academy, avalizando essa possibilidade.

Células-tronco na Odontologia

Pelegrine explica que o principal objetivo do uso de células-tronco na Odontologia é trazer potencial osteogênico para os procedimentos de reconstrução óssea. “Os materiais biossintéticos conduzem à cicatrização óssea, principalmente por terem fosfato de cálcio, mas o fato de não terem células, proteínas e nenhuma outra propriedade que induza à formação óssea faz com que sua capacidade de regeneração seja menor. Isso limita a indicação do material para defeitos considerados não críticos. Quando a área a ser reconstituída é muito grande, com paredes ósseas remanescentes muito distantes uma da outra, é preciso trabalhar com algo que funcione como um aditivo”, explica.

Além da aplicabilidade das células-tronco em reconstruções ósseas, a Odontologia também parece se aproximar de uma grande conquista: a regeneração da polpa dental (nervos e vasos sanguíneos do dente). Recentemente, o grupo de pesquisadores brasileiros publicou um estudo chamando a atenção para essa possibilidade, por meio de um estudo em ratos. Com isso, o tradicional tratamento de canal, que lança mão de materiais obturadores, seria substituído por uma metodologia muito mais biológica, segundo Pelegrine. “No entanto, é importante frisar que, diferentemente do uso das células-tronco para regeneração óssea, o uso da terapia celular para a regeneração da polpa dental ainda está em uma fase muito precoce, limitada a incipientes estudos em modelo animal”, comenta o pesquisador.

As células-tronco utilizadas, retiradas do periósteo do palato ou até mesmo da polpa do dente, são não embrionárias. Segundo Pelegrine, isso já elimina o viés ético que envolve o uso ou descarte de embriões e também possibilita que o tecido gerado seja bem próximo do almejado, uma vez que é retirado do próprio paciente.

“Muito do que vai acontecer é norteado pelo microambiente onde as células-tronco serão utilizadas. Quando colocadas em um tecido ósseo, por exemplo, existe uma sinalização celular para diferenciação na linhagem osteoblástica, de forma a se desenvolverem como tecido ósseo. Porém, é possível promover a estimulação das células para essa diferenciação dentro do laboratório. Nossos estudos já comprovaram que as células-tronco, além de aumentarem a formação óssea, favorecem muito a vascularização, o que faz o enxerto incorporar mais rápido em situações de defeitos críticos”, detalha o cirurgião-dentista brasileiro, afirmando que o método tradicional, com material biossintético, é mais indicado para as situações de defeitos menores. “Não faz sentido investir em uma terapia celular para corrigir um defeito que é praticamente autocicatrizante”, pondera.

Pelegrine explica que os estudos focam em simular situações de alta relevância clínica. “Os enxertos com células-tronco são indicados para casos em que se utilizaria enxerto autógeno, com material retirado do próprio paciente, mas de forma mais invasiva”. Segundo o especialista, pelo fato do procedimento de enxerto com células-tronco ser menos invasivo, podendo ser feito até em nível ambulatorial, muitas vezes não demandando internação e anestesia geral, seu custo pode até ser menor do que o procedimento tradicional, apesar de toda a tecnologia envolvida.

O grupo de estudos de Pelegrine trabalhou com concentrado de células da medula óssea para uso em humanos. “Em vez de abrir o ilíaco e retirar o osso, fazemos uma anestesia local, entramos com uma cânula e aspiramos a medula, que depois será centrifugada. Então, concentramos algumas células de interesse e isso é caracterizado como manipulação mínima, pois não é necessário levar o material para um laboratório para isolamento da célula”, explica.

O cirurgião-dentista aponta também que os procedimentos dependem muito do tecido fonte selecionado para a terapia celular. “Polpa de dente ou periósteo do palato são materiais pequenos que requerem manipulação laboratorial para multiplicação das células. Já no caso de uma lipoaspiração para utilizar uma fração estromal vascular do tecido adiposo ou a medula óssea, que permite a aspiração de mais de 50 mL, o volume retirado permite, eventualmente, trabalhar com a manipulação mínima (point of care), sem necessidade de tirar a célula do seu ambiente e levar ao laboratório, onde ficará em média quatro semanas em cultura, dependendo da velocidade do processo”, detalha.

O pesquisador diz que, neste momento, as pesquisas sobre o uso de células-tronco estão em um processo de construção de protocolos sólidos que atendam as exigências da Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) para a realização de procedimentos médicos e odontológicos. “Em muitas áreas, já saímos da primeira fase da terapia celular, onde foram feitas as pesquisas de base. Passamos pela fase de pesquisa clínica de convalidação e agora estamos em um nível de evidência para algumas aplicações, para as quais já estão sendo criados protocolos para uso clínico rotineiro. Esse termo ainda não pode ser utilizado para a Odontologia, pois precisamos que algumas entidades consubstanciem validações”, diz Pelegrine.

Células-tronco e a corrida espacial

O papel de André Pelegrine como coordenador do estudo sobre o comportamento das células-tronco em um ambiente microgravitacional ultrapassa os limites da Odontologia e tem sido de fundamental importância para as pesquisas aeroespaciais nos Estados Unidos.

O interesse do KSCIA International Space Academy no estudo que vem sendo desenvolvido pela equipe de Pelegrine se dá pela necessidade da instituição em conhecer o comportamento da fisiologia humana na microgravidade. Ele explica que, hoje em dia, o tempo de permanência do homem no ambiente de microgravidade é maior, devido à existência de estações espaciais e até mesmo de projetos mais ambiciosos de exploração espacial em longas distâncias.

“Sabemos que os ossos sofrem um dano muito importante na microgravidade. Por isso, esses estudos são fundamentais para nortear caminhos que permitam o desenvolvimento dos projetos espaciais sem prejuízo da saúde humana”, relata, argumentando que se um astronauta sofre algum tipo de acidente no espaço que acarrete em uma fratura, por exemplo, é preciso saber como tratar isso naquele ambiente, quando não for possível trazê-lo de volta imediatamente. “Uma viagem de Marte até a Terra dura quase um ano, dependendo da mecânica orbital entre os planetas”, pondera. A ideia, como ele explica, é estudar as células-tronco ósseas não apenas para entender seu processo de regeneração, mas também para avaliar a possibilidade dos astronautas terem alguma espécie de kit com suas próprias células-tronco, que os permita tratar alguns tipos de lesões ósseas no próprio ambiente microgravitacional.

André Pelegrine ressalta que essa participação de cientistas brasileiros no programa espacial norteamericano, em um estudo de tamanha relevância cujos resultados impactarão o mundo todo, só foi possível graças à união de grandes instituições e seus profissionais. Entre estes, o especialista menciona o Laboratório R-Crio, por todo seu pioneirismo, arrojo e confiabilidade; a Universidade São Leopoldo Mandic, da qual ele é docente e que permitiu sua ida e a da professora Elizabeth Martinez aos Estados Unidos para realizarem esse projeto; do educador espacial Jefferson Michaelis, presidente da Fundação Michaelis e membro do conselho do KSCIA, localizada no Kennedy Space Center, que incentiva a educação sobre temas espaciais e leva estudantes de diversas partes do mundo para conhecer as pesquisas e inovações nessa área; e a Sociedade Brasileira de Direito Médico e Bioética (Anadem), presidida pelo advogado Raul Canal, um entusiasta do desenvolvimento espacial e estudos sobre senescência (envelhecimento) celular, que investiu recursos próprios para a viabilização desta pesquisa. Os pesquisadores norte-americanos Shannon Holiday e Jamie Foster, que avalizaram a permanência de Pelegrine e Elizabeth nos Estados Unidos para o desenvolvimento desse estudo, também são mencionados pelo cirurgião-dentista brasileiro como figuras fundamentais para esse projeto.

Além do trabalho que desenvolvem no SLSL, André Pelegrine e Elizabeth Martinez também atuam como pesquisadores visitantes na Universidade da Flórida, onde são feitas algumas análises para o estudo que coordenam.

Projeto tamanho família

A dedicação necessária para o desenvolvimento de um programa dessa envergadura conta também com um importante time que atua nos bastidores, mas cujo apoio e engajamento são essenciais: a família.

André Pelegrine se mudou para os Estados Unidos com a esposa e os dois filhos – uma menina de 13 anos e um menino de dez anos – por um período de um ano, a princípio, mas que pode ser prorrogado conforme o desenvolvimento do estudo e interesse das instituições envolvidas, ou até exigir idas frequentes ao país futuramente, caso voltem a viver no Brasil.

“Meus filhos e minha esposa estão gostando da experiência, apesar de ter mudado muito a vida de todos. Sentimos saudades do Brasil, da família e dos amigos, mas todos estamos com a mente muito aberta para o que tiver que acontecer e para aproveitar essa grande oportunidade”, finaliza.