Atendimento odontológico a pacientes com Síndrome de down
LInda Marra, filha do cirurgião-dentista Rafael Marra.

Atendimento odontológico a pacientes com Síndrome de down

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Especialistas e familiares compartilham suas experiências no atendimento odontológico destes pacientes, que demandam uma atenção especial.

A trissomia do cromossomo 21 (T21 – síndrome de Down) é uma característica genética congênita em que as células contam com três cromossomos 21 em vez de dois, que é o padrão. Pessoas com essa condição apresentam algumas características comuns, como comprometimento cognitivo, cardiopatias congênitas, alterações da tireoide e doenças autoimunes. Também pode ser observada certa semelhança na aparência física, principalmente do rosto. Mas, de maneira geral, os indivíduos herdam traços da própria família, e as características comportamentais podem ser diversas e variam de acordo com diferentes fatores, que vão desde a forma de educação para o convívio social até traços da personalidade própria.

O atendimento odontológico aos pacientes T21 requer alguns cuidados específicos, principalmente para que o processo seja confortável e o menos traumático possível para eles, seus pais ou responsáveis e também para os próprios cirurgiões-dentistas que os atendem.

A cirurgiã-dentista Fabiane Bittar, de São Paulo, especializada no atendimento de pacientes com T21, aponta que entre as características comuns a esses pacientes, diretamente ligadas à Odontologia, pode-se destacar o palato ogival e profundo, e a maxila menor, que afeta a função respiratória, a fala e a oclusão. “É por isso que as crianças com T21 precisam iniciar um tratamento precoce de Fonoaudiologia, Fisioterapia e Odontologia”, explica. Segundo ela, o ideal é que o tratamento comece já nos primeiros meses de vida do bebê. Normalmente, consiste em começar a abrir a arcada dentária para facilitar o melhor posicionamento dos dentes de leite, além de possibilitar que a criança comece a falar e respirar adequadamente. Com o passar dos anos, quando chegam na adolescência, é comum que os caninos permanentes sejam impactados, não conseguindo descer da maxila, de acordo com Fabiane. “Mas, isso não costuma acontecer com frequência quando conseguimos abrir espaço na boca desde pequenas”, observa.

O envelhecimento precoce também é uma característica presente nos pacientes T21. A cirurgiã-dentista diz que é possível observar jovens pacientes T21 com condições comuns a pacientes com mais de 50 anos de idade. “Essa é uma das razões por preferirmos tratamentos ortopédicos aos ortodônticos para os jovens adultos. Os aparelhos ortodônticos promovem uma movimentação dos dentes, e as raízes desses pacientes são mais curtas devido ao envelhecimento precoce”, detalha.

A agenesia (ausência de um ou mais dentes) dos incisivos laterais também é comum na T21. Fabiane explica que esses dentes podem faltar tanto na dentição de leite como na permanente. “A dentição em forma de cone e pontiaguda também é comum a alguns pacientes. Quando a criança se machuca, passamos uma lixa para tirar a ponta viva”, detalha. Por apresentarem baixa imunidade da cavidade oral, Fabiane explica que esses pacientes tendem a desenvolver estomatite quando têm uma virose. “A doença periodontal também é bastante presente”, pontua, explicando que, por isso, costuma indicar o uso de antibiótico profilático antes de um procedimento invasivo para evitar a entrada de bactérias pelos vasos sanguíneos.

A cirurgiã-dentista Cintia Ferreira, de Palmas (TO), é especializada no atendimento a pessoas com deficiência (PCDs) e acrescenta ao seu conhecimento a experiência pessoal de ser mãe de uma criança T21. Sua terceira filha, a mais nova, nasceu com essa condição e hoje tem quatro anos de idade.

Cintia aponta que os profissionais que atendem pacientes T21, além de estarem muito bem informados sobre as comorbidades que podem acometer essas pessoas, precisam saber que existem algumas alterações de constituição óssea de face e de cabeça que impactam toda a região de atuação dos cirurgiõesdentistas. “O terço médio da face do paciente T21 é encurtado. Isso afeta o processamento auditivo, a respiração, a fala e a arcada dentária”, comenta Cintia, dizendo que a agenesia ou o excesso de dentes (dentição supranumerária) também são características comuns. Como o osso da maxila é menor, falta espaço para o desenvolvimento correto da dentição. A cirurgiã-dentista explica que essas pessoas tendem a apresentar apinhamento dos dentes.

“A hipotonia muscular é também uma característica do paciente T21. A musculatura da face, assim como de todo o corpo, é flácida. Estudos têm comprovado que isso se deve à frouxidão da língua, que tende a ficar para fora da boca”, explica Cintia, dizendo que é por isso que o paciente T21 precisa de acompanhamento fisioterápico e fonaudiológico.

“Para os bebês, costuma-se indicar o uso da placa palatina de memória, colocada no céu da boca e que tem um orifício. A língua do bebê naturalmente procura esse espaço, que é a posição correta em que deve ficar. Esse aparelho ajuda a trabalhar a tonicidade da língua e proporciona o vedamento labial, auxiliando na melhora da função respiratória”, explica.

Cintia faz a interessante observação de que os pacientes T21 não têm predisposição para desenvolver cárie, pois a colonização bacteriana da boca para essa doença é mais restrita. No entanto, eles têm predisposição genética a desenvolver doença periodontal, devido à frouxidão do ligamento do periodonto. “É muito comum vermos pacientes T21 com 30 ou 40 anos de idade que já tiveram perda de dentes sem nunca terem tido cárie”, afirma.

Todas essas características indicam que o quadro ideal é que o paciente T21 inicie os tratamentos e cuidados com a saúde bucal o mais precocemente possível, mas diversos fatores podem comprometer essa possibilidade. São pessoas que requerem diversos outros cuidados, muitas vezes prioritários, submetendo-os a uma rotina exaustiva de consultas, exames e tratamentos médicos, que fazem com que os pais ou responsáveis acabem postergando o tratamento odontológico.

“Muitas vezes, recebemos adolescentes ou adultos que nunca passaram por atendimento odontológico antes. Classificamos esses pacientes como de necessidades odontológicas urgentes. Eles normalmente precisam ser atendidos em ambiente hospitalar, com anestesia geral”, diz Cintia.

Desafios comportamentais

Não é possível classificar um padrão comportamental das pessoas com T21, pois isso varia de acordo com diversos fatores subjetivos que vão desde questões de personalidade até a forma de criação. Mas, as duas especialistas chamam atenção para o fato de que esses pacientes, muitas vezes, chegam ao consultório com medo ou já traumatizados por tantos procedimentos médicos a que são submetidos em virtude de sua condição de saúde. “Precisamos, antes de mais nada, oferecer acolhimento, não apenas aos pacientes, mas também aos pais ou acompanhantes. Isso começa por criar um ambiente lúdico, com decoração temática infantil, e também pela atenção no atendimento, conquistando a confiança do paciente e explicando os procedimentos que serão feitos, de forma que ele não seja surpreendido”, sugere Fabiane Bittar. Ela relata que um simples movimento para pegar algum instrumento, sem avisar ao paciente, pode assustá-lo e comprometer a consulta, por exemplo.

Uma anamnese completa e detalhada também é muito importante no sentido de conhecer possíveis gatilhos que podem despertar reações adversas nos pacientes. Imagens, cores, sons, gestos, assuntos, tudo pode ser um motivo que desperte em algumas pessoas com T21 um comportamento de medo, tensão ou até agressividade.

Procedimentos complexos

Quando os pacientes T21 necessitam de sedação, Cintia e Fabiane relatam optar pelo procedimento em âmbito hospitalar, com anestesia geral, pela segurança de terem atendimento imediato caso haja alguma intercorrência. O cuidado se dá especialmente por serem pessoas com outras comorbidades, principalmente cardiopatias congênitas, além do risco de interação medicamentosa com o sedativo.

Quanto a procedimentos de maior complexidade, como implantes ou outras reabilitações, Cintia Ferreira destaca que o mais importante é priorizar a funcionalidade da saúde bucal, e não a estética, principalmente se isso puder oferecer qualquer risco à saúde ou desconforto do paciente. “É comum que os pais ou responsáveis se preocupem também com a aparência da dentição, mas sempre temos que explicar os riscos envolvidos, dada a fragilidade da condição física e sistêmica desses pacientes. Eles precisam cuidar da saúde bucal para poder mastigar, falar e respirar bem. Se essas funções estiverem preservadas, costumamos explicar que não vale a pena expor o paciente”, diz Cintia.

Ela acrescenta que procedimentos como implantes, por exemplo, são raramente indicados. “Vai depender muito da condição cognitiva do paciente. Se ele não conseguiu cuidar de sua higiene bucal com a dentição normal, será que teria condições de tomar todos os cuidados com os implantes dentários? Será que seus ossos remanescentes são suficientes para suportar esse tratamento?”, questiona.

Fabiane Bittar acrescenta que atualmente a tecnologia permite muitas soluções estéticas pouco invasivas. “Se for possível aliar a funcionalidade a um resultado estético favorável, sem colocar o paciente em risco ou sofrimento, esse caminho é sempre válido”, pondera. A especialista ressalta que é preciso considerar a rotina familiar do paciente antes de indicar um plano de tratamento. Citando como exemplo um tratamento ortodôntico, Fabiane aponta que é preciso avaliar quem cuida do paciente, por quanto tempo ele poderá usar o aparelho, como isso será realizado e qual a disponibilidade de visitas do paciente ao consultório, entre outros fatores.

Rafael Marra, cirurgião-dentista e ortodontista.
Rafael Marra, cirurgião-dentista e ortodontista.

 

Especialização

O número de cirurgiões-dentistas com especialização no atendimento a pessoas com deficiência (PCD) ainda é muito baixo, se comparado a outras áreas. O Conselho Federal de Odontologia contabiliza um total de 910 pessoas em todo o País. Há uma grande demanda reprimida no que diz respeito ao atendimento odontológico especializado para PCDs. Segundo o Censo de 2010 do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), mais de 45 milhões de brasileiros apresentam algum tipo de deficiência auditiva, visual, motora ou cognitiva. Destes, cerca de 300 mil pessoas são diagnosticadas como T21. “O número de cirurgiõesdentistas com especialização no atendimento de PCDs é baixo, assim como são poucos os cursos de capacitação disponíveis. Primeiramente, são os odontopediatras que acabam atendendo esses pacientes, e depois os cirurgiões-bucomaxilofaciais que realizam as cirurgias. E, eventualmente, os odontogeriatras”, aponta Cintia Ferreira.

Fabiane Bittar ressalta que é comum os odontopediatras continuarem atendendo seus pacientes T21 durante toda a vida, já que a confiança entre paciente e cirurgião-dentista é um fator fundamental para o sucesso do atendimento a PCDs. Muitas vezes, isso exige que os profissionais se especializem em diversas áreas ou também realizem atendimentos em parceria com colegas de outras especialidades complementares.

Além da Odontopediatria e do atendimento a PCDs, Fabiane tem especialização em Prótese Bucomaxilofacial, Ortodontia e Cirurgia, e também fez um mestrado em Otorrinolaringologia pela Universidade Federal de São Paulo. “Em nossa clínica, somos 12 cirurgiões-dentistas. Então, para os casos de especialidades que eu não tenha formação, consulto os meus colegas e, juntos, atendemos aos pacientes que necessitem de procedimentos de outras especialidades diferentes da minha”, conta.

Por serem pacientes que requerem um acompanhamento médico e odontológico multidisciplinar, as especialistas ressaltam a importância da comunicação constante entre cirurgiões-dentistas e os médicos responsáveis pelo atendimento a PCDs, para que decisões sobre procedimentos, tratamentos e medicamentos sejam tomadas em conjunto. Cintia destaca que o atendimento a PCDs não depende apenas da habilitação técnica, mas principalmente de empatia e senso de humanidade. Ela ressalta que é preciso gostar de pessoas, ter em mente que algumas consultas podem durar mais de cinco horas e, mesmo assim, sem garantia de que vá concluir o tratamento ou ao menos a parte que seria realizada naquele mesmo dia. “Cada paciente tem seu tempo e isso precisa ser respeitado”, afirma.

A especialista deixa um recado aos colegas de profissão, incentivando-os a investir na especialização em atendimento a PCDs. “Não é somente pela possibilidade de ajudar essas pessoas, mas também como um desafio profissional porque essa é uma área com um universo de possibilidades. Precisamos de mais especialistas de todas as áreas e de mais cursos”, conclui.

Fernando Reiff, Leny Evelini Reiff e Sophia Reiff.

 

Com a palavra, os pais

O cirurgião-dentista e ortodontista Rafael Marra, de Palmas (TO), é pai da menina Linda Marra, de três anos de idade, que é T21 e paciente de Cintia Ferreira. Por não ser especializado em atendimento a PCDs, Rafael optou por não assumir o atendimento odontológico da filha. “Minha filha usou a placa palatina de memória logo nos primeiros meses de vida. Como ela passa por diversos outros procedimentos, como Terapia Ocupacional, Fonoaudiologia, Fisioterapia e diversos médicos, optamos por cuidar da parte ortodôntica mais adiante, para não a sobrecarregar”, conta Marra, dizendo que ele mesmo fará o tratamento ortodôntico que se fizer necessário quando Linda estiver mais velha.

O casal Leny Evelini Reiff e Fernando Reiff são pais de Sophia Reiff, de 12 anos, diagnosticada como T21 ao nascer. “Logo depois do susto do diagnóstico, arregaçamos as mangas e fomos buscar todos os especialistas necessários ao cuidado da saúde da Sophia, inclusive a parte odontológica”, conta Leny. A mãe de Sophia diz que a menina sempre aceitou bem os procedimentos e o uso do aparelho, já que passou por atendimento e tratamento odontológico e ortodôntico desde os primeiros meses de vida. No entanto, ela ressalta a luta dos pais e da criança para enfrentar todas as rotinas com os cuidados com a saúde de maneira geral.

A odontopediatra Cintia Ferreira conta que recebeu o diagnóstico de T21 da filha Tereza precocemente, aos quatro meses de gravidez, o que possibilitou que ela e o marido se preparassem não apenas do ponto de vista emocional, mas também tomando providências práticas, como cuidados médicos específicos para a saúde da filha.

Marra e o casal Reiff só souberam do diagnóstico T21 das filhas após o nascimento. Eles relatam que foi realmente um susto e um sentimento de insegurança diante de um desafio inesperado. Desse momento em diante, os pais iniciaram uma rotina intensa de busca por informação, orientação profissional e uma reprogramação de rota. Mas, todos afirmam se considerarem privilegiados pela oportunidade de gerarem e criarem crianças tão especiais.