Como os cirurgiões-dentistas estão preparados para atender pessoas com necessidades especiais?

Como os cirurgiões-dentistas estão preparados para atender pessoas com necessidades especiais?

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Desde a especialização técnica até a concepção do espaço físico, há muito a ser construído até que os consultórios cheguem próximos ao ideal.

O atendimento odontológico a pessoas com deficiência (PCDs) ou com necessidades especiais é uma especialidade reconhecida pelo Conselho Federal de Odontologia (CFO), mas, infelizmente, de pouco interesse dos cirurgiões-dentistas. No universo dos mais de 400 mil profissionais registrados no CFO, apenas 921 têm essa especialidade.

Segundo dados da PNAD (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios) de 2023, realizada pela Secretaria Nacional dos Direitos da Pessoa com Deficiência do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania (SNDPD/MDHC) e o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), a população com deficiência no Brasil foi estimada em 18,6 milhões de pessoas acima dos dois anos de idade, o que corresponde a 8,9% da população nessa faixa etária.

A discrepância estatística entre a população com deficiência e o número de cirurgiões-dentistas especializados no atendimento a essas pessoas já indica o quanto esses pacientes estão desassistidos no Brasil. Quando falamos em PCDs, isso engloba um leque muito grande de doenças, comorbidades, disfunções físicas e intelectuais em condições permanentes ou até temporárias.

Ainda que muitos cirurgiões-dentistas não estejam aptos a atender pacientes com casos mais complexos, como autismo, síndrome de Down e paralisia cerebral, entre outras doenças, certamente podem ter entre seus clientes pessoas com condições de mobilidade reduzida, como cadeirantes, obesos, pessoas com nanismo e diversas outras características que necessitem de acessibilidade para terem atendimento odontológico.

Nesse sentido, é importante entender como criar um espaço físico de acessibilidade realmente eficaz, que viabilize a permanência e atendimento dessas pessoas no consultório ou clínica odontológica. “Quando falamos da inclusão da pessoa com deficiência, temos que pensar em todas as acessibilidades, não só arquitetônica, mas a comunicacional, mercadológica e programática. Na Odontologia, o problema maior é que não temos programas de incentivo para o atendimento à pessoa com deficiência. Dos quase mil cirurgiões-dentistas especialistas no atendimento a pessoas com necessidades especiais, muitos já estão encerrando suas carreiras. Essa especialidade não é incentivada na graduação”, declara a cirurgiã-dentista, especialista e professora Adriana Zink, de São Paulo, um dos nomes mais importantes do atendimento a pessoas com necessidades especiais no Brasil.

Ela aponta que, normalmente, nas universidades que contam com essa disciplina na grade curricular, os alunos que entram em contato com o tema pensam na acessibilidade prioritariamente do ponto de vista arquitetônico: criar rampas de acesso a cadeirantes, um banheiro acessível, mas não se trata apenas disso. “O cirurgião-dentista, muitas vezes, tem dificuldades no manejo desses pacientes. Não sabe como transferir um cadeirante para a cadeira odontológica, por exemplo.

As cadeiras, em geral, suportam até determinado limite de peso que, se ultrapassado, pode fazê-la virar”, exemplifica, mostrando um dos problemas que pode acontecer com um paciente obeso, que também precisa de recursos de acessibilidade.

“E não são apenas as pessoas obesas que correm esse risco. Muitos esportistas que praticam musculação também têm sobrepeso e podem correr o mesmo risco”, acrescenta Adriana, pontuando ainda que estão incluídos no grupo de pessoas com necessidades especiais os idosos, pessoas de baixa estatura, amputados ou com qualquer restrição de mobilidade permanente ou momentânea, que faça uso de cadeira de rodas, muletas, bengalas ou andadores.

A especialista menciona o caso de uma paciente que tem nanismo, e disse sempre ter tido muita dificuldade em acessar a cadeira odontológica por ser muito alta para ela. Neste caso, uma pequena escada já viabilizaria esse acesso sem causar constrangimentos à pessoa, que não se sente à vontade de ser carregada no colo como uma criança, e é normalmente o que acontece. “Um paciente com paralisia cerebral ou um tetraplégico, por exemplo, precisa ser atendido em sua própria cadeira de rodas, porque já tem todo um aparato que o estabiliza ali. Nem é possível transferir essas pessoas para a cadeira odontológica, então, o cirurgião-dentista tem que estar preparado para esse tipo de atendimento também”, diz Adriana.

Segundo a professora, só haverá uma mudança significativa nesse quadro quando a disciplina de atendimento a pessoas com necessidades especiais se tornar obrigatória na graduação de Odontologia. Ela diz que atualmente algumas universidades colocam a disciplina na grade curricular, mas como optativa. “Se o aluno não tiver esse primeiro contato com a disciplina, ele não abre sua mente para a necessidade de se preparar para atender essas pessoas, não consegue desenvolver a empatia para isso”, opina.

Dentro de sua especialidade, Adriana tem mestrado e doutorado para o atendimento a pessoas com o transtorno do espectro autista (TEA), e ministra cursos para cirurgiões-dentistas nessa área. Ela comenta que grande parte de suas alunas são cirurgiãs-dentistas que têm filhos autistas e utilizam os ensinamentos para saberem atender aos próprios filhos.

Adriana comenta que o fato da maioria dos cirurgiões-dentistas não estar preparada para receber e atender pessoas com necessidades especiais faz com que, muitas vezes, esses pacientes procurem a sua clínica. “Os odontopediatras costumam ter um ambiente bastante lúdico, com jogos e brinquedos para entreter as crianças, mas como fazem com uma criança cega? Até mesmo os produtos dentais educativos, que evidenciam os locais de má escovação, utilizam cores para isso. Como ensinar essa criança cega? Elas acabam vindo ao meu consultório, mas tinham que ser tratadas por odontopediatras”, questiona.

“Os edifícios também são outra barreira. Os mais novos já têm sido construídos com conceitos de acessibilidade, porém os mais antigos não. Há uma quantidade muito grande de consultórios em sobrelojas ou prédios menores cujo acesso é só por escada”, aponta a especialista, observando ainda que até mesmo o próprio cirurgião-dentista ou algum dos seus colaboradores pode ter que imobilizar uma perna ou fazer uso provisório de cadeira de rodas, muletas ou andadores, e, ainda que conseguisse exercer suas funções normalmente, não teria acesso ao consultório. São inúmeras as situações enfrentadas pelos PCDs para saírem de suas casas e chegarem a um consultório ou clínica odontológica, sozinhas ou acompanhadas. O transporte público é acessível em poucas cidades, falta vagas especiais para automóveis em ruas comerciais, e os espaços nos consultórios nem sempre são adaptados.

Mesmo sendo especialista no atendimento a pessoas com deficiência, Adriana Zink conta que levou seis anos para conseguir ser atendida pela prefeitura de São Paulo para conseguir uma vaga de acessibilidade em frente à sua clínica. “Um dos argumentos utilizados para a negativa ao meu pedido foi de que não havia obrigatoriedade legal de vaga para PCD em consultórios ou clínicas odontológicas. Tive que fazer um abaixo-assinado, que reuniu mais de 600 assinaturas para conseguir essa vaga de estacionamento”, declara. Depois dessa longa espera, foram demarcadas duas vagas públicas para PCDs próximas ao consultório de Adriana, e que são de direito de uso dos clientes dela e dos outros estabelecimentos comerciais que ficam na mesma rua.

A especialista observa que todas essas dificuldades de acessibilidade sobre mobilidade urbana e a pouca oferta de cirurgiões-dentistas especialistas acabam fazendo com que essas pessoas desistam dos cuidados com a saúde bucal e só procurem atendimento em casos de emergência. “Hoje, a expectativa de vida da população está aumentando e, com isso, aumentam também as doenças do envelhecimento. Muitas pessoas têm dificuldades até para subir escadas”, aponta. Muito depois de já ter dedicado grande parte da sua vida ao atendimento a PCDs, Adriana Zink foi diagnosticada com uma síndrome hereditária que afeta sua mobilidade. “Quando se fala em necessidades especiais, as pessoas que não passam por isso sempre pensam que é um problema que só acontece com os outros e que nunca vai bater à sua porta”, finaliza.

O que diz a lei

O advogado Paulo Henrique Teófilo, de São Paulo, indica a existência da Lei no 10098/2000, que estabelece normas para a promoção de acessibilidade para portadores de deficiência e mobilidade reduzida, tanto para edificações públicas ou de uso coletivo como privadas. “O artigo 13 desta lei, que versa sobre o uso privado – e cabe para clínicas odontológicas –, diz que os edifícios têm que atender o mínimo de recursos de acessibilidade, descrevendo alguns detalhes, como a existência de rampas, corrimãos, sinalização para deficientes visuais, elevadores com espaço para cadeirantes, entre outros recursos”, diz Teófilo. Ele menciona também a norma NBR 9050, da ABNT, que detalha todas as condições de acessibilidade que um edifício deve ter.

É uma instrução com mais de 160 páginas que engloba todas as características que devem ser consideradas na construção e adequação das edificações. “Os edifícios novos precisam atender aos requisitos mínimos para conseguir o alvará de funcionamento. Aqueles que não são novos precisam se adaptar, senão são passíveis de multa”, explica.

O Estatuto da Pessoa com Deficiência, criado em 2015, é mais um instrumento de garantia de direitos de acessibilidade. O prazo para adequação dos espaços para acessibilidade passou por alguns adiamentos, mas, segundo a última promulgação, as edificações já deveriam ter concluído essas adequações em 2022.Na prática, isso não acontece da forma ideal. Teófilo observa o exemplo do caso de prédios tombados pelo Patrimônio Histórico, que não podem passar por nenhum tipo de intervenção, ou outros cujas características de construção também não permitem uma adequação completa.

Em seu ponto de vista, no caso das clínicas e consultórios odontológicos, é mais provável que somente os de médio e alto padrão se disponham a realizar adequações para a acessibilidade das pessoas com necessidades especiais. Isso acaba limitando o acesso apenas a PCDs com maior poder aquisitivo. “O cirurgião-dentista que não puder dispor de um consultório com acessibilidade tem a opção de não atender pacientes com necessidades especiais e indicar outro colega para esse atendimento. Mas, pode acontecer de algum paciente antigo dele também se tornar um PCD ou uma pessoa com mobilidade reduzida. Neste caso, ele perderá o cliente por falta de estrutura para recebê-lo”, analisa o advogado.


Acessibilidade na arquitetura

A arquiteta Paloma Lucio, de São Paulo, é especialista em projetos para clínicas e consultórios. Segundo ela, de maneira geral, os profi ssionais da saúde não se preocupam com a questão da acessibilidade quando pensam em construir ou reformar seus espaços de trabalho. “As pessoas se preocupam em como podem otimizar a utilização dos espaços com uma estética bonita”, diz Paloma.

Ela aponta os sanitários como um constante ponto de discussão com seus clientes. “A acessibilidade é exigida por normas técnicas e legislação, mas os médicos ou cirurgiões-dentistas preferem utilizar o menor espaço possível para esse cômodo. Isso dificulta ou até impede o uso por alguns idosos, obesos ou cadeirantes. Um banheiro acessível precisa ter espaço para a cadeira de rodas girar, para as pessoas se apoiarem. Não se trata apenas de colocar uma porta maior ou um acento mais alto”, comenta a arquiteta.

“O argumento que eu mais ouço quando sugiro a acessibilidade nos planejamentos é que esses profissionais têm poucos ou quase nenhum paciente com necessidades especiais. Mas eu penso que se são poucas as pessoas que frequentam esses consultórios é porque eles não são lugares acessíveis, e não porque esse seja um público pequeno”, pondera. Ela diz que, segundo as normas da ABNT (Associação Brasileira de Normas Técnicas), um sanitário tem que ter pelo menos 1,50 m x 1,70 m. “Isso, na visão dos profi ssionais de saúde, é um espaço muito grande para ser dedicado a um banheiro”, comenta.

Paloma diz que, apesar das exigências legais, não há nenhum mecanismo de fiscalização ativa. Segundo ela, normalmente as fiscalizações acontecem apenas por denúncia e, ainda que caiba uma corresponsabilidade do arquiteto ou engenheiro responsável pelo projeto, normalmente a pena recai principalmente sobre o cliente, que é o profissional de saúde que encomendou e aprovou o projeto. Ela diz que, apesar da Arquitetura – assim como a Engenharia – ter regras muito específicas sobre a criação de espaços com acessibilidade, muitas vezes, a falta de fiscalização faz com que os clientes não queiram cumprir as exigências sobre medidas e apenas pedem a instalação de rampas de acesso, sem se importar se a inclinação delas é inadequada.

“É preciso que as pessoas criem uma mentalidade de acessibilidade que de fato acolha as pessoas com necessidades especiais, e não apenas maquiem os espaços para parecerem acessíveis”, conclui.