Alexandre de Alcântara e a Odontologia como instrumento para a música

Alexandre de Alcântara e a Odontologia como instrumento para a música

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O cirurgião-dentista Alexandre de Alcântara mantém foco no atendimento de músicos que tocam instrumentos de sopro, com cuidado especial na profissão.

A Odontologia e a música percorrem caminhos distintos. Mas, em muitas ocasiões, esses caminhos se encontram para aperfeiçoar ainda mais a arte milenar que combina sons e ritmos. O cirurgião-dentista Alexandre de Alcântara, de São Paulo, encontrou na música o que hoje representa quase 90% de sua cartela de clientes. Em especial, os músicos que tocam instrumentos de sopro.

Não existe na Odontologia uma especialidade reconhecida para esse tipo de atendimento, mas a expertise de Alcântara tem sido desenvolvida ao longo de mais de 20 anos de carreira e, hoje em dia, ele é procurado por instrumentistas de sopro do Brasil e de diversas partes do mundo.

Autor dos livros “Saúde para músicos” (Keyboard) e “Odontologia para músicos de sopro” (Keyboard), Alexandre de Alcântara também assina os livros “Sem medo de prosperar” (Chiado) e “Cirurgião-dentista frente à Aids” (Pancast).

Filho do renomado saxofonista e flautista Carlos Alberto de Alcântara, e criado em uma família de músicos, Alexandre conta que, logo após se formar em Odontologia, já passou a ter uma grande quantidade de pacientes músicos, muito por conta dos profissionais que já eram amigos da família.

“Eu nunca me formei pensando em ser cirurgião-dentista de músicos, mas eles começaram a procurar atendimento no meu consultório porque já eram nossos amigos e era como se transferissem para mim a confiança que tinham em meu pai”, lembra Alcântara. Ele conta que atendia a esses pacientes de forma protocolar, sem nenhuma diferenciação. “Um dos meus tios até me mostrou alguns textos sobre dentes em métodos musicais, mas isso não despertou meu interesse num primeiro momento”, recorda.

Alexandre de Alcântara tem mais de 20 anos de carreira na Odontologia.

A conexão entre Odontologia e música começou quando, cerca de três anos após ter se formado, Alcântara recebeu em seu consultório um trompetista que havia feito uma reabilitação estética com outro profissional, colocando coroas de metalocerâmica de canino a canino, em um trabalho que ele avaliou como perfeito. Porém, após o procedimento, esse músico viajou para uma turnê na Europa e foi surpreendido pelo fato de que não conseguia mais emitir som nenhum com seu instrumento.

De volta ao Brasil, o músico foi indicado a procurar Alexandre de Alcântara. Ele queria criar um pequeno diastema entre as coroas para que o ar pudesse passar quando ele soprasse o instrumento. “Fiquei com receio de mexer em um trabalho de outro colega que, esteticamente, estava realmente muito bem-feito”, confessa Alcântara. Mas, por insistência do paciente, ele utilizou uma broca muito fina, de acabamento, para fazer um ligeiro desgaste entre os dentes. “Na mesma hora, ele pegou o instrumento e conseguiu tocar, e só faltou chorar de emoção”, conta.

A partir desse acontecimento, o profissional percebeu que músicos de sopro realmente precisavam de um atendimento diferenciado. “Para eles, a performance musical é muito mais importante que a estética”, ressalta.

Alcântara diz que as técnicas utilizadas são as mesmas usadas em outros pacientes, mas o diferencial é observar a fisiologia e adequar o procedimento para que o paciente obtenha a performance musical necessária. “É um olhar, não um procedimento. Eu reabilitei um paciente músico, que hoje está com 99 anos de idade, e até cinco anos atrás ainda tocava seu instrumento”, conta.

O profissional descarta qualquer prejuízo à saúde bucal por conta da prática musical. “Muitas pessoas pensam que músicos de sopro podem danificar a dentição por causa da prática da profissão, mas isso não é verdade. É totalmente o contrário”, afirma. Ele explica que se a pessoa colocar força, não consegue a vibração dos lábios, necessária para a produção do som. “Quanto menos força eles colocam na boca, mais o lábio vibra, e melhor é a performance”, orienta.

Ainda de acordo com o especialista, a fisiologia para performance musical necessita de uma análise da musculatura. “Quando comecei a atender músicos, eu achava que os dentes eram mais importantes para um bom resultado sonoro. Mas hoje tenho a convicção de que são os músculos”, diz.

As intervenções necessárias podem ser as mais diversas, desde reabilitações estéticas até ortodônticas. Por ser um clínico geral, quando recomenda um tratamento especializado para um paciente, Alcântara indica um profissional da área correspondente, e acompanha o tratamento, apontando para o colega os objetivos a serem alcançados.

O cirurgião-dentista separou seus pacientes em três categorias para nortear os tipos de tratamento a que podem ser submetidos, de forma que não precisem passar por procedimentos muito invasivos ou longos, dependendo dos objetivos a serem alcançados.

  1. Músicos iniciantes: “Nesses casos, procuro não fazer muitas alterações para priorizar a performance porque eles ainda não sabem se seguirão essa carreira profissionalmente, então, realizo tratamentos comuns”.
  2. Músicos profissionais: “Para estes, realizo as interferências necessárias para que alcancem a melhor performance musical”.
  3. Músicos mais velhos: “Esses que não tocam mais profissionalmente e só pegam o instrumento eventualmente em casa, entre amigos ou para seu próprio deleite, só precisam se manter tocando, então, não há necessidade de priorizar a performance”.

Alguns cantores também frequentam o consultório de Alexandre de Alcântara, entendendo que o formato e a condição dos dentes ou da arcada dentária interferem em sua performance musical. “Quando abrimos a boca, a língua faz movimentos em ondas que fazem com que a coluna de ar suba e preencha a cavidade entre a língua e o palato. Qualquer anteparo ou perda de dimensão vertical, qualquer projeção ou recuo de mandíbula, ou até mesmo um botox mal executado pode interferir na qualidade sonora emitida por um cantor”, detalha.

Ele dá como exemplo o caso de Freddie Mercury, vocalista da banda britânica Queen, que nunca quis corrigir seus dentes, que eram projetados para a frente, porque tinha receio que isso pudesse diminuir sua performance vocal.

Hoje em dia, ainda segundo Alcântara, já existem estudos que discorrem sobre a interferência da dentição na atividade de músicos de sopro, ao contrário da época em que começou seus atendimentos. “Eu não tenho interesse em criar nenhum método Alcântara de atendimento a músicos. Quero apenas que meus colegas tenham esse olhar diferenciado para esse tipo de paciente porque um procedimento corriqueiro para outras pessoas pode impactar muito a vida e carreira de um músico”, conclui.

Casos atendidos

O trompetista Eduardo Madeira, que atuou em grandes orquestras, como Osesp (Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo) e Teatro Municipal de São Paulo, conta que, ainda na década de 1990, passou por um tratamento ortodôntico durante três anos para corrigir uma falha no formato dos dentes que interferia na performance para tocar seu instrumento, e que teve um bom resultado. Na época, utilizou um aparelho móvel para poder removê-lo quando tocava.

Em 2016, em um pequeno acidente, o trompetista quebrou um dente. Quando a cirurgiã-dentista que o atendeu aplicou a anestesia, ele sentiu como se tivesse levado um choque muito forte, que chegou a levantar sua perna involuntariamente. Mesmo após o efeito da anestesia, Madeira passou várias semanas com uma sensação de dormência nos músculos da face.

Nessa época, ele morava no interior de São Paulo e, em 2017, quando se mudou para a capital, procurou Alexandre de Alcântara, que detectou diversos problemas fisiológicos que estavam interferindo na performance musical de Madeira. “Eu tinha um dente do siso (terceiro molar) incluso, que empurrava os dentes inferiores, e um problema grave de oclusão”, conta. Madeira começou um tratamento com Alcântara que, segundo ele, fez toda a diferença.

Em 2018, um colega de orquestra observou que Eduardo estava com o lado inferior esquerdo do rosto mais caído. Ao consultar Alexandre de Alcântara, o profissional indicou que ele procurasse um neurologista, e foi diagnosticado um pequeno AVC (acidente vascular cerebral) isquêmico, que o trompetista nunca havia percebido.

O Alexandre de Alcântara me recomendou continuar tocando e exercitando a musculatura do rosto. Eu continuo em tratamento, mas com uma grande melhora. Agora as consultas são mais esporádicas. Se o Alexandre não tivesse descoberto todos esses problemas que eu tinha na boca, talvez hoje eu não pudesse mais tocar o trompete profissionalmente”, relata.

Fernando Dissenha, trompetista e professor da Osesp, conheceu Alexandre de Alcântara por indicação de um colega, no ano 2000. O paranaense, que havia se mudado para São Paulo pouco tempo antes, estava sentindo um desconforto nos dentes próximos ao apoio do bocal do instrumento.

Alcântara diagnosticou uma mordida cruzada grau três, mas como esse problema não afetava a performance musical de Dissenha, o cirurgião-dentista realizou outros tratamentos necessários, sem alterar muito o problema de oclusão para não comprometer o desempenho musical de Dissenha. “Naquela época, eu também estava com alguns problemas de labirintite, e esses ajustes resolveram isso definitivamente”, lembra.

O músico conta que os ajustes incluíam desde pequenos desgastes até retoques com resina em dentes que ele sentia que o incomodavam na hora de tocar. “Íamos experimentando até encontrar a forma ideal, também trabalhando a musculatura da face”, conta, dizendo que houve fases em que chegou a fazer ajustes semanais, devido a outros problemas que enfrentou com sua dentição.

“Esse trabalho feito pelo Alexandre de Alcântara é essencial para mim. Tenho certeza que sem esses tratamentos minha performance musical já teria sido muito afetada”, relata Dissenha.

Apesar de não haver uma especialidade odontológica que abranja esse tipo de atendimento, Alexandre de Alcântara conquistou algo importante para os músicos sopro-instrumentistas. Em 2012, o Conselho Federal de Odontologia aprovou, por unanimidade, o parecer 717, que reconhece a necessidade de tratamento especial para este grupo. Com isso, é possível oferecer uma abordagem mais ampla e despender a atenção devida aos profissionais da música.

“Me orgulho dessa conquista que valoriza o músico e os artistas, de forma geral. Creio que nenhuma classe profissional teve esse reconhecimento na área da Saúde antes”, finaliza Alexandre.