Uso terapêutico da toxina botulínica

Uso terapêutico da toxina botulínica

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Especialista em Harmonização Orofacial destaca que os benefícios da toxina botulínica vão muito além da estética.

Por Inahiá Castro

A toxina botulínica, proteína produzida pela bactéria Clostridium botulinum, quando ministrada em quantidades muito pequenas, tem a propriedade de provocar o relaxamento da musculatura facial atuando no bloqueio da musculatura adjacente de pontos da face, eliminando as linhas de expressão. Esse efeito estético, com duração de três a seis meses, tem lotado as clínicas de cirurgiões-dentistas especializados em Harmonização Orofacial (HOF) desde que a Odontologia reconheceu esta especialidade, há cinco anos. Mas, além dos benefícios estéticos, a proteína tem originalmente aplicações terapêuticas eficazes amplamente utilizadas na Reabilitação Oral.

A professora e cirurgiã-dentista Karina Ferrão, de Ribeirão Preto (SP), diretora do Conselho Regional de Odontologia de São Paulo (Crosp), destaca em suas aulas e palestras o uso terapêutico da toxina botulínica na reabilitação oral de pacientes com condições adversas, como a sialorreia (excesso de saliva), a paralisia facial, entre outras intercorrências.

Karina participou ativamente da luta pelo reconhecimento da Harmonização Orofacial como especialidade da Odontologia junto ao CFO, ratificado pela Resolução 198/2019. “Hoje em dia, a HOF está muito mais voltada para os procedimentos estéticos, mas é muito importante ressaltar as indicações terapêuticas da toxina botulínica”, afirma. A especialista lembra que as primeiras resoluções do CFO permitiam que cirurgiões-dentistas fizessem uso da toxina botulínica apenas para fins terapêuticos, proibindo o uso da proteína com finalidades estéticas.

Ela cita que pessoas que sofrem com a sialorreia, seja por produção excessiva de saliva ou por consequência de problemas neurológicos, que não conseguem controlar a salivação, alcançam ótimos resultados com o uso da toxina botulínica. Pacientes com esclerose lateral amiotrófica (ELA), acidente vascular cerebral (AVC), mal de Parkinson, paralisia cerebral e paralisia facial também têm indicação para o uso da substância para controle da sialorreia. “Na minha opinião, a toxina botulínica é a melhor indicação terapêutica para essas condições”, diz Karina, considerando que a substância não é um tratamento, mas um potente auxiliar terapêutico para diversas condições.

Este foi o tema da tese de mestrado de Karina, a partir da pesquisa que realizou com os pacientes que atende no SUS (Sistema Único de Saúde). Funcionária pública na cidade de Sertãozinho, vizinha a Ribeirão Preto, ela luta pela liberação do uso da toxina botulínica para o tratamento da sialorreia em pacientes do serviço público de saúde. Karina destaca que não se pode garantir 100% de sucesso com a toxina botulínica para o tratamento da sialorreia, mas afirma que em seu estudo 75% dos pacientes responderam positivamente ao uso da substância. Esse resultado é confirmado em diversos artigos científicos, que já indicam o uso terapêutico da proteína para o tratamento de sialorreia desde os anos 1990.

A aplicação da toxina para os casos de sialorreia pode ser feita na glândula parótida ou nas submandibulares. “Se o paciente tem uma salivação de nível leve para moderado, aplicamos apenas na glândula parótida porque o objetivo não é secar a boca. Se a dose for muito alta, pode ocorrer uma xerostomia, que é a diminuição ou ausência do fluxo salivar, ocasionando outro problema”, observa. A especialista afirma que a toxina botulínica tem três ações farmacológicas, atuando em músculos, glândulas (salivares, sudoríparas e lacrimais) e receptores de dor. “Além de informar a população sobre essa indicação terapêutica, quando falamos em SUS, temos que considerar o benefício financeiro. Um paciente que sofre com sialorreia tem alto risco de desenvolver pneumonia por aspiração da saliva, isso leva a uma internação de cerca de dez dias com administração de antibiótico endovenoso, o que onera muito o sistema público”, pondera.

Karina pontua, no entanto, que o bem-estar do paciente deve ser o principal argumento para qualquer tratamento terapêutico, e também leva em consideração os benefícios que se estendem aos cuidadores e familiares que, muitas vezes, por falta de condições financeiras, assumem os cuidados com a pessoa, quase sempre sem conhecimento técnico para o controle da sialorreia. “É exaustivo, e esses cuidadores acabam por também adoecer”, relata. Ela costuma atender pacientes em condições muito severas, como os que estão acamados, traqueostomizados e precisam de atendimento domiciliar, mas que respondem muito bem ao uso da toxina botulínica para o controle da doença.

toxina botulínica
Sialorreia e distonia oromandibular idiopática estão entre as condições indicadas para o uso terapêutico da toxina botulínica. (Imagens cedidas pela Dra. Karina Ferrão).

 

Indicação ampla e resultados satisfatórios

Lidando constantemente com o uso da toxina botulínica em pacientes que sofrem de distonias, blefaroespasmos e paralisia facial, Karina observa que eles acabam por adquirir resultados estéticos como consequência do uso terapêutico, devido ao efeito colateral da substância sobre as linhas de expressão. “Por isso, não é possível dissociar o uso terapêutico do estético em HOF”, complementa. “As diretrizes do Ministério da Saúde apontam a toxina botulínica como a única indicação para pacientes com espasmos involuntários causados por distonia, mas a determinação é muito voltada para a área médica. Porém, quando falamos em face e glândulas salivares, estas são áreas de domínio do cirurgião-dentista”, constata. “As cefaleias secundárias à disfunção temporomandibular (DTM) também são amenizadas ou até cessadas quando os pacientes recebem aplicações da toxina em músculos da mastigação para alívio dessas dores, que muitas vezes são incapacitantes.

O mesmo acontece com quem sofre de nevralgia de trigêmeos, que normalmente se submete aos efeitos colaterais de medicamentos fortes e pode ter resultados muito melhores com o uso da toxina”, indica Karina. “Até mesmo a aplicação da substância previamente a uma cirurgia ortognática pode relaxar a musculatura, auxiliando o paciente a passar pelo procedimento sem sentir tantas dores”, cita, exemplificando diversas outras indicações terapêuticas para a toxina botulínica, como hipertrofia de músculo masseter e bruxismo. Mas ressalta que, para os casos de DTM, a toxina não funciona como tratamento, e sim como um auxiliar terapêutico.

Karina faz questão de refutar qualquer banalização da utilização estética da toxina botulínica. Ela também atua nessa área e afirma que mais de 90% dos pacientes procuram as clínicas de Harmonização Orofacial para este fim. Mas aponta que os profissionais precisam estar muito melhor preparados para o uso terapêutico da substância. “Não é tão simples. O cirurgião-dentista precisa ter muito conhecimento para fazer um diagnóstico preciso e avaliar se aquele paciente pode ser beneficiado com o uso da toxina. O planejamento é individual, e dados como posologia, possíveis reações adversas e até mesmo contraindicações devem ser analisados caso a caso”, explica.

Segundo Karina, o efeito da toxina botulínica para fins terapêuticos tem a durabilidade semelhante ao uso estético, permanecendo no organismo de três a seis meses, sendo possível fazer uso contínuo a longo prazo, mas é preciso reavaliar cada caso periodicamente.

“Para todas as indicações, a toxina leva em média de 48 a 72 horas para começar a fazer efeito. Em sete dias, alcança-se o pico e, em 15 dias, temos o resultado final, que é quando avaliamos se a dosagem foi suficiente ou se é necessário fazer algum ajuste”, detalha.

Quanto às contraindicações, Karina aponta que existem as absolutas e as relativas. Gestantes e lactantes fazem parte do grupo que não pode receber aplicação da toxina, pois essas pacientes não podem ser submetidas a estudo. Desta forma, não há dados científicos que deem suporte de indicação terapêutica nesses casos. Pacientes com doenças que levam a uma degeneração muscular grave também não podem fazer uso da substância. “No caso dos pacientes com ELA, a indicação é apenas para sialorreia, cuja aplicação é feita nas glândulas salivares, e não musculares”, ressalta. “Pacientes que tomam anticoagulantes, os que necessitam de expressão facial e os que têm expectativas irreais têm contraindicação absoluta. Os que sofrem de doenças autoimunes e alguns raros casos de alergia têm contraindicação relativa. Por isso, o uso da toxina deve ser avaliado interdisciplinarmente junto aos médicos que acompanham essas pessoas”, detalha Karina.

Ela também indica que as interações medicamentosas devem ser observadas, tanto no uso terapêutico como estético, porque alguns medicamentos, como antibióticos aminoglicosídeos podem potencializar o efeito da toxina e isso interfere na dosagem a ser administrada. “Uma anamnese detalhada, o conhecimento do estado de saúde geral do paciente e o conhecimento farmacológico são fundamentais antes de utilizar a toxina botulínica, para qual seja a finalidade. O cirurgião-dentista precisa pesquisar, estudar e se resguardar para garantir o sucesso de qualquer tratamento, finaliza.