Recurso regulamentado pelo CFO pode agilizar etapas importantes de um tratamento, mas exige que o cirurgião-dentista conheça os limites da Odontologia mediada por tecnologias.
Por Leandro Duarte
A pandemia da Covid-19, que teve seus momentos mais agudos em 2020, obrigou o mundo inteiro a dar continuidade à vida com as dificuldades impostas pelo distanciamento social. Seja no comércio ou nas relações de trabalho, a internet nos ajudou na comunicação, na venda de produtos e serviços, na realização de reuniões e até nos encontros de amigos e familiares. Além disso, o distanciamento nos forçou a inovar na comunicação com profissionais da Saúde. Na Odontologia, o contato entre cirurgião-dentista e paciente deixou de ser estritamente no consultório para possibilitar a abordagem entre telas. O coronavírus apenas acelerou um processo inevitável, tanto no Sistema Único de Saúde (SUS) quanto em âmbito particular: as teleconsultas.
Como um dos princípios do SUS é a equidade, as gestantes foram uma preocupação grande com relação à continuidade dos tratamentos, quando o atendimento presencial dizia respeito às urgências e emergências.
Em Sorocaba, cidade do interior de São Paulo, a experiência do município com o uso da Teleodontologia foi reconhecida em dezembro do ano passado, pela Organização Pan-Americana da Saúde (Opas) e pelo Ministério da Saúde, como melhor experiência inovadora em Saúde Bucal voltada para o serviço público de Saúde do País.
O coordenador de Saúde Bucal de Sorocaba, Diego Garcia Diniz, conversou com a reportagem da revista Sorrisos Brasileiros para contar como o projeto foi implementado e os desafios para o futuro neste tipo de atendimento. “Na atenção básica, algumas linhas de cuidado geravam um risco sem nenhum tipo de acesso, principalmente no caso das gestantes e das puérperas, um grupo de cuidado que em nenhum momento deixou de fazer o pré-natal. E aí nós vimos algumas iniciativas Brasil afora, nos canais de saúde coletiva, sobre como estabelecer algum contato com esse grupo para que a gente levasse minimamente uma orientação em saúde bucal, em um momento em que a Teleodontologia não estava regulamentada pelo Conselho Federal de Odontologia (CFO)”, recorda Diniz. “Por isso, fomos em uma linha de orientação remota para tentarmos identificar o melhor momento para trazer essas pessoas para o tratamento odontológico dentro da UBS (Unidade Básica de Saúde)”, explica.
Com a prática regulamentada pelo CFO em junho de 2020, o segundo passo foi desenvolver uma solução junto ao Parque Tecnológico de Sorocaba, que foi batizada de “Tele Corona”, fundamental para respaldar a atuação dos cirurgiões-dentistas, além da coleta de informações e dados de acesso – sempre com grande atenção às diretrizes da Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD). “O mais importante era fazer chegar a informação de que você pode tratar, que precisa escovar os dentes e ter cuidados com a saúde bucal na gestação. São informações que o cirurgião-dentista pega em uma primeira consulta presencial, que é muito mais para conhecer o paciente”, conta o gestor, que reforça o fato de que as gestantes faltosas eram contatadas por telefone e a teleconsulta era agendada em seguida “para não pegar a paciente de supetão”.
Ainda de acordo com Diniz, a incorporação das teleconsultas continua exigindo um esforço de conscientização sobre as vantagens da tecnologia, tanto para a população como para muitos profissionais da Saúde. Do ponto de vista estratégico de implantação, esse processo não aconteceu de forma vertical e obrigatória nas unidades. “Se não tivermos profissionais engajados, eles vão dizer que ‘esse negócio não funciona’. Hoje estamos com cinco unidades básicas em Sorocaba usando essa ferramenta, que traz um resultado muito expressivo”, respalda Diniz. Neste momento, o serviço começa a ser ofertado para pessoas acamadas e, futuramente, em teleorientações com pacientes que colocaram alguma prótese dentária.
O que diz a Resolução CFO-226
Para quem ainda não está muito familiarizado com o que pode ou não ser feito e oferecido em um teleatendimento dentro da Odontologia, a leitura da Resolução CFO-226, de 4 de junho de 2020, que dispõe sobre o exercício da Odontologia à distância, traz o ponto mais importante logo no primeiro artigo, que diz respeito à proibição de um diagnóstico e elaboração de plano de tratamento odontológico por telefone ou chamada de vídeo.
Em sinergia com os avanços tecnológicos e os bons resultados obtidos com as teleorientações, o Conselho Federal de Odontologia (CFO), em parceria com o Instituto Nacional de Tecnologia da Informação (ITI), regulamentou a assinatura digital para cirurgiõesdentistas. O principal benefício da decisão é que, após a consulta presencial, o cirurgião-dentista já pode utilizar a prescrição eletrônica – disponível no site do CFO – para assinar digitalmente uma receita e enviá-la ao paciente ou responsável, seja por e-mail ou aplicativo de mensagem. Em seguida, a pessoa que passa pelo tratamento pode compartilhar com o farmacêutico a prescrição, sem a necessidade do documento físico.
Mas é importante frisar que tal recurso só tem validade após a consulta presencial. O cirurgião bucomaxilofacial Sérgio Almeida, que também ministra aulas na pósgraduação de Cirurgia e Implantodontia da Universidade de Taubaté, enxerga a Teleodontologia como mais uma ferramenta importante e que complementa a atuação do profissional. Ele cita que esse contato inicial vem aumentando, inclusive, por meio do uso das redes sociais. “Esse contato é facilitado digitalmente e funciona como uma espécie de triagem de pacientes que você pode, eventualmente, contribuir no tratamento deles”, conta.
Uma das grandes vantagens apontadas por Almeida é a orientação do paciente, por exemplo, sobre o profissional mais indicado para lidar com aquele caso. Com isso, a pessoa economiza tempo e dinheiro. Em muitas situações, o detalhamento de um incômodo ou dor já facilita esse encaminhamento, visto que são muitas as especialidades da Odontologia. No entanto, o professor da Unitau atenta para a maior dificuldade atual da Teleodontologia. “A Odontologia é efetivamente intervencionista porque, na grande maioria dos casos, a gente examina e já faz um procedimento na sequência”, pondera o especialista.
Porém, Almeida comemora a regulamentação da assinatura digital para os cirurgiõesdentistas. Segundo ele, isso permite um conjunto de funcionalidades e de ferramentas. “O recurso da teleprescrição favorece muito o pré-operatório, pois o profissional tem a oportunidade de prescrever e pedir exames. No pós-operatório, a teleconsulta é muito benéfica para saber se determinado remédio fez efeito para a dor, se está tudo bem. Se surgir algum incômodo, eu peço para a pessoa comparecer à clínica”, pontua.
Ética na Teleodontologia
De acordo com o professor, a tecnologia não pode servir para um profissional tirar uma vantagem comercial sobre a condição de saúde do paciente, principalmente com uma falsa promessa de que a Teleodontologia seja um facilitador para a diminuição de etapas em um determinado tratamento. “Há uma questão ainda mais grave que diz respeito à coerção e convencimento de potenciais pacientes por meio de ligações de telemarketing com a indução de procedimentos. A própria situação já se configura como uma espécie de consulta forçada”, alerta o cirurgião.
Outro desafio sugerido por Sérgio Almeida está na necessidade de coibir as abordagens abusivas que acontecem nas ruas por vendedores ou pessoas que fazem panfletagem para redes de clínicas odontológicas. “Certo dia, uma pessoa olhou para mim e disse que eu precisava de uma limpeza”, conta. Na ocasião, o especialista retrucou: “Você está dando um diagnóstico aqui, no meio da rua?”, para espanto do divulgador, que ficou sabendo pelo profissional que essa “tática de venda” se configura em crime.
O alerta deste exemplo de prática de divulgação abusiva também pode acontecer durante uma chamada telefônica ou por vídeo. Para Almeida, um dos pontos mais importantes da Resolução 226 do CFO dispõe sobre a norma de que “não será permitida a realização da teleorientação e do telemonitoramento por centrais de atendimento ou qualquer outro meio que centralize o recebimento de demandas e as distribua automaticamente”.
“Uma mensagem de WhatsApp já se configura como teleatendimento. Por isso, é importante seguir a recomendação do CFO para que toda comunicação realizada entre o cirurgião-dentista e o paciente seja documentada por e-mail, telefone, aplicativo de mensagem ou outra plataforma. Isso confere segurança para os dois lados”, conclui o profissional, que mostra preocupação com os desafios que a inteligência artificial, atualmente capaz de emular vozes e criar filtros com rostos, já impõe às autoridades competentes.