Odontologia no futebol: relação histórica já teve seu protagonismo

Odontologia no futebol: relação histórica já teve seu protagonismo

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Finalizada a Copa do Mundo, a Sorrisos Brasileiros apurou se a Odontologia no futebol tem cuidado da saúde bucal de seus jogadores.

A Copa do Mundo de 2022, realizada no Catar, deu ao planeta uma pequena amostra do papel da Odontologia do Esporte no preparo e rendimento de atletas, em especial no futebol. Durante a competição, foi possível notar alguns jogadores com protetor bucal, que vem ganhando espaço no esporte. Outros entraram em campo utilizando protetores faciais durante as partidas, não necessariamente por problemas bucais. Entre eles estavam Joško Gvardiol, zagueiro da Croácia, e Heung-Min Son, destaque da seleção da Coreia do Sul. Ambos enfrentaram a Seleção Brasileira enquanto se recuperavam de lesões graves no rosto, e chamaram atenção pelo uso do acessório, feito em fibra de carbono e material emborrachado e que protege os jogadores em casos de contato com a região lesionada.

Mas a Odontologia do Esporte é muito mais do que apenas tratar atletas com protetores de boca ou rosto. A especialidade, reconhecida pelo Conselho Federal de Odontologia em 2015 por meio da Resolução CFO 160, foi bem definida pelo Conselho Regional de Odontologia de São Paulo (Crosp) como a área de atuação do cirurgião-dentista, que inclui segmentos teóricos e práticos da Odontologia, com o objetivo de investigar, prevenir, tratar, reabilitar e compreender a influência das doenças da cavidade bucal no desempenho dos profissionais ou amadores, com a finalidade de melhorar o rendimento esportivo e prevenir lesões, considerando as particularidades fisiológicas dos atletas, a modalidade que praticam e as regras do esporte.

O presidente do CFO, Juliano do Vale, chama atenção, ainda, para o fato de ser um mercado com muito potencial a ser explorado. Atualmente, o Brasil conta apenas com 31 especialistas reconhecidos legalmente pelo CFO, a maioria dos quais já se dedicava ao tratamento específico de atletas muito tempo antes.

É o caso de Vítor Ugo Salvoni, cirurgião-dentista da Sociedade Esportiva Palmeiras há 30 anos, e que desenvolve um trabalho importante de acompanhamento da saúde bucal dos jogadores profissionais do time de futebol, compondo a equipe multidisciplinar que trabalha de forma integrada no cuidado da saúde dos atletas.

“Há 30 anos comecei no Palmeiras cuidando da categoria de base, e os jogadores do profissional eram atendidos no meu consultório. Há cerca de oito anos, montei um consultório no Centro de Treinamento, porque o clube entende a importância dos cuidados com a saúde bucal para a saúde sistêmica dos atletas”, diz Salvoni. O especialista explica que uma dor de dente ou alguma inflamação ou doença periodontal, pode afastar o atleta das atividades esportivas, prejudicando seu rendimento. “A bactéria pode se alojar no músculo. Imagine um atleta que tem que extrair um dente do siso, incluso, em meio a uma temporada de jogos?”, questiona, exemplificando que além do transtorno físico para o jogador, uma situação como essa prejudicaria toda a equipe.

Salvoni conta que o Núcleo de Saúde e Performance do Palmeiras utiliza uma plataforma de conteúdo interno sigiloso, onde são inseridos todos os dados de acompanhamento médico e odontológico dos atletas para conhecimento da coordenação científica do clube.

“Na pré-temporada, que acontece no início do ano, fazemos uma avaliação clínica e radiográfica para saber se há algum foco de infecção ou dente incluso que ofereça risco de fratura. Assim, quando começa a temporada, já temos essa avaliação e vamos mantendo os cuidados durante o ano”, detalha, dizendo que também é avaliada a condição respiratória dos jogadores.

O especialista diz que uma pessoa que respira de forma errada ou tem algum problema de oclusão pode desenvolver uma postura de cervical errada e até influenciar na sua forma de pisar, condições extremamente inadequadas para qualquer indivíduo e muito mais para um atleta de alto rendimento.

Nesta preparação, também é feita uma avaliação da qualidade do sono dos jogadores, condição considerada muito importante para o desempenho e a saúde sistêmica. Os atletas também são orientados a não ingerir grandes quantidades de bebidas ácidas, para evitar a erosão e abrasão dos dentes.

Outro aspecto apontado por Salvoni diz respeito à estética dos jogadores. Hoje em dia, eles lidam muito com a imagem pessoal, e isso está diretamente relacionado à imagem do clube. Por isso, faz diferença que os profissionais tenham um sorriso apresentável, que transpareça saúde e cuidado.

Questionado sobre tratamentos mais longos e invasivos, como colocação de implantes ou cirurgias ortognáticas, que exigiriam um tempo maior de recuperação dos jogadores, impedindo-os de atuar nesse período, Salvoni explica que, nesses casos, costumam realizar esses procedimentos quando os atletas precisam ficar afastados das atividades esportivas por terem sofrido alguma lesão grave. Então, podem aproveitar o mesmo período de afastamento para executar esse tratamento odontológico.

Os jogadores do Palmeiras, segundo Salvoni, não são obrigados a realizar seus tratamentos dentários com ele, podendo ser atendidos por outros profissionais.

No entanto, ele afirma que trata 90% dos atletas do clube. Os que optam por não se tratar com ele passam primeiro por sua avaliação, e ele entra em contato com os colegas que atenderão a esses atletas, passando todas as orientações e cuidados específicos que devem ter para tratá-los.

Por essas razões, Salvoni acredita que todos os clubes de futebol – e também de outros esportes que tenham atletas e competidores de alta performance – deveriam contar um serviço de Odontologia do Esporte para cuidar da saúde bucal desses esportistas, considerando todos os detalhes e especificidades necessários para isso.

Mas, não é o que acontece na maioria dos clubes e associações esportivas. A Sorrisos Brasileiros entrou em contato com cinco grandes times brasileiros de São Paulo e do Rio de Janeiro, mas o Palmeiras foi o único, entre os consultados, que conta com esse serviço odontológico dedicado. As assessorias de comunicação dos demais nos retornaram dizendo que não há cirurgiões-dentistas no corpo clínico, e que os atletas procuram esse atendimento individualmente fora dos clubes.

“Mesmo na Europa, são poucos os times que contam com um serviço de Odontologia dentro dos clubes. Isso seria muito importante, porque até mesmo se um atleta sofre uma fratura em um dente ou em algum osso da face em um treinamento, por exemplo, o atendimento pode ser imediato, seguido do acompanhamento do caso com todos os cuidados específicos da Odontologia do Esporte”, pondera Salvoni.

Entre os riscos que os atletas correm ao cuidar da saúde bucal com cirurgiões-dentistas que não são especialistas em esportes está a preocupação com o doping. Medicamentos que contêm corticoides, por exemplo, entre outras substâncias, podem levar o esportista a uma punição por doping, e isso pode não apenas tirá-lo de uma competição importante, como também prejudicar toda sua carreira, assim como arranhar a imagem do clube.

Uma especialidade de olho no alto rendimento

O cirurgião-dentista e presidente da Câmara Técnica de Odontologia do Esporte do Conselho Regional de Odontologia de São Paulo (Crosp), Reinaldo Brito e Dias, considera que o reconhecimento da especialidade vem ao encontro da necessidade, cada vez maior, de oferecer saúde, prevenção, proteção e acompanhamento odontológico ao atleta, colaborando, assim, para o seu desempenho esportivo.

“A prática desta nova especialidade carrega a responsabilidade dos cuidados aos atletas na prevenção, proteção, cuidados no doping, acompanhamento e orientação, que muitas vezes é particular e específica de cada modalidade. O cirurgião-dentista que se dedicar à Odontologia do Esporte deve estar sempre atualizado quanto às regras das modalidades específicas, determinações anuais da agência controladora de doping (Wada), relação da saúde bucal com a saúde geral do atleta e vice-versa, além de cuidados elementares com a tabela de jogos e convocações”, explica Dias.

O especialista orienta que atletas que necessitam de medicação devem estar devidamente documentados, fazendo com que essa documentação tramite junto às federações nacionais e internacionais de Direito. Esse documento deve esclarecer que seu estado de saúde sofrerá uma piora significativa caso a substância e/ou método proibido deixe de ser utilizado no decurso do tratamento de uma doença aguda ou crônica, que seu rendimento não será potencializado significativamente pelo seu uso, que não existe alternativa de tratamento terapêutico para o problema de saúde existente e que a necessidade de utilização da substância e/ou método proibido não decorre da utilização anterior de qualquer substância e/ou método proibido pela Wada.

Dias pondera, ainda, que o profissional dedicado ao atendimento do atleta/paciente deve conhecer as particularidades dele, tratá-lo e protegê-lo da melhor forma possível. É importante lembrar que, muitas vezes, não existe somente a saúde do atleta sob o cuidado e atenção do profissional. “Temos suas conquistas, sua carreira, sua modalidade esportiva e também o País que ele representa”, completa.

“A cavidade oral possui uma microbiota (conjunto de microrganismos) particular e bem equilibrada. A partir do momento que existe o desequilíbrio, inicia-se um processo de doença que compromete o bem-estar do indivíduo. Quando nos reportamos ao paciente atleta, o primeiro pensamento que se deve ter em mente é que uma das características que o difere de um paciente comum do dia a dia do cirurgião-dentista é que, se a corrente sanguínea leva bactérias a longa distância no organismo humano, esse processo ocorre em uma velocidade maior no organismo do atleta, pois ele encontra-se sempre no limite fisiológico”, explica Dias.

Os atletas possuem um metabolismo muscular mais acelerado. As bactérias orais, por sua vez, têm, cada uma, sua predileção: deslocam-se da cavidade oral, seja dos tecidos periodontais ou de lesões periapicais, para diferentes nichos do organismo humano. Segundo o especialista, é preciso entender que a cavidade oral e os microrganismos que a colonizam naturalmente podem se apresentar em até 400 espécies diferentes, devendo estar em equilíbrio para manter a microflora e, consequentemente, a saúde oral. “Deve-se pontuar que problemas de saúde geral podem ter início nas enfermidades bucais e ter em mente o quanto essa situação pode trazer riscos à saúde do atleta e ao seu desempenho. Essa é uma das responsabilidades do cirurgião-dentista especialista em Odontologia do Esporte”, conclui.

A Odontologia na história do futebol

O período de maior destaque da Odontologia no futebol brasileiro, comprovando a importância dos cuidados com a saúde bucal dos atletas, deu-se com a presença de Mario Trigo Hermes de Loureiro na Seleção Brasileira nas Copas do Mundo de 1958, 1962, 1966 e 1970.

O trabalho criterioso e dedicado do cirurgião-dentista alcançou grande fama, e não se limitou apenas aos jogadores. Antes da Copa do Mundo da Suécia, em 1950, Mario Trigo extraiu 118 dentes de 33 pessoas da delegação brasileira, entre atletas e membros da comissão técnica. Considerado o pai da Odontologia do Esporte, sua maior preocupação era de que qualquer foco de infecção ou problema dentário pudesse debilitar a saúde dos jogadores e seu rendimento no futebol.

Foi uma atuação pioneira na história da Odontologia no futebol, em uma época em que não se falava sobre a relação entre a saúde bucal e a saúde sistêmica das pessoas. Giselda Bellini, viúva do zagueiro-central e capitão da Seleção Brasileira de 1958, Hideraldo Luis Bellini, conta que o trabalho de Mario Trigo foi o único que ela conheceu como atendimento odontológico dedicado a atletas.

“O Bellini não teve esse tipo de serviço em nenhum dos clubes por onde passou. Naquela época, os jogadores tinham que procurar atendimento odontológico de forma particular. Foi muito importante esse trabalho realizado pelo Dr. Mario Trigo na Seleção Brasileira”, afirma Giselda.

Nascido em 1911, Mario Trigo faleceu em Brasília, em 2008, aos 96 anos de idade, de forma natural, sem apresentar problemas graves de saúde. O profissional marcou a história do futebol brasileiro e deixou um legado de cuidado com a saúde bucal e sistêmica, abrindo caminho para que a Odontologia no Esporte ganhasse embasamento científico e técnico.