Maryan Kazman: quando o amor à Odontologia vence o medo

Maryan Kazman: quando o amor à Odontologia vence o medo

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Conheça a incrível história de Maryan Kazman, cirurgiã-dentista do Afeganistão, que enfrenta o regime totalitário de seu país para viver seu sonho de liberdade.

Ela tem apenas 33 anos, um semblante tranquilo, voz suave e segura, mas guarda no olhar e na alma o sofrimento e o desafio de ser inteligente, contestadora e com a mente livre, vivendo em um país onde tudo é proibido ou limitado para mulheres.

Estudar, exercer uma profissão, viajar desacompanhada do marido, usar redes sociais ou mostrar o rosto em público, ainda que usando o hijab – véu utilizado para cobrir os cabelos – são práticas proibidas às mulheres islâmicas, sob o risco de penas severas, inclusive a morte. Mas nada disso ameaça Maryan Kazman.

Com um canal no YouTube e página no Facebook, ela soma mais de 53 mil seguidores que acompanham suas postagens no perfil Dental Maniak, onde compartilha vídeos, postagens e aulas sobre Odontologia, e mais especificamente sobre Ortodontia, sua especialidade.

Maryan conta que seu marido e familiares, principalmente seu pai, pedem constantemente para que ela pare de expor seu rosto nos vídeos, temendo por sua integridade física e por sua própria vida. Tudo por conta das represálias que pode sofrer do Talibã, grupo ultraconservador islâmico que voltou a tomar o controle político do Afeganistão desde agosto de 2021, após a retirada das tropas norte-americanas do país.

Ela sorri e ignora os pedidos. “Não tenho medo da morte”, diz com placidez e convicção, mas confessa que teme pela segurança e liberdade das filhas, uma de 13 e outra de 10 anos, que atualmente estão proibidas de ir à escola. E é isso que faz Maryan Kazman pensar em deixar seu país com a família. “Não enxergo nenhuma luz no fim do túnel, mas preciso fazer alguma coisa para tirar minhas filhas dessa situação”, diz.

“Nós temos apenas uma vida. Eu não posso deixar de viver por medo do que podem fazer comigo. O que quer que tenha que acontecer, vai acontecer, independentemente do que eu faça ou deixe de fazer. Por que eu deveria ter medo de algo que ainda não aconteceu?”, questiona com muita firmeza e coragem.

Maryan Kazman nasceu no Afeganistão, em 1990, e quando tinha apenas três anos de idade sua família se mudou para o Paquistão, onde viveram como refugiados por cerca de 18 anos, após o Talibã ter assumido o controle do seu país. Ela é a filha mais velha – a única mulher – e tem mais quatro irmãos.

O pai continuou trabalhando em Cabul, capital afegã, como farmacêutico, mas sempre teve a preocupação de que os filhos tivessem acesso à educação, inclusive Maryan. Por isso, garantiu esse direito enviando a família para o Paquistão, onde todos estariam mais seguros e afastados do regime imposto pelo Talibã.

Ele enviava dinheiro para garantir o sustento e estudo dos filhos, e também para que aprendessem inglês e informática, que ele julgava importante para que fossem bem-sucedidos.

No Paquistão, Maryan Kazman cursou escolaridade completa. Mas, aos 18 anos, foi obrigada a se casar, como designam os dogmas da religião muçulmana. Ela se casou com um primo, para quem havia sido prometida pelo pai, e voltou para Cabul, no Afeganistão. Nessa época, o país já estava sob o governo da Nova República, com apoio econômico e militar dos Estados Unidos, que promoveu uma invasão após o atentado às Torres Gêmeas, em 2001 (leia o resumo histórico no box).

“Para os muçulmanos, o casamento entre primos é algo normal. Então, meu pai não poderia recusar ao seu irmão, meu tio, o pedido de casamento com o filho dele, meu primo, que é dez anos mais velho do que eu. A única coisa que ele pediu ao meu marido é que ele me matriculasse em uma universidade. Cresci em uma família que sempre deu muita importância à educação”, conta Maryan.

Ela diz que o pai a consultou para saber se aceitaria se casar com o primo. Ela aceitou, mas tinha apenas 16 anos quando começaram a namorar, e hoje pondera que era ainda muito nova para ter uma opinião real sobre o assunto.

Apesar da promessa feita por seu tio e sogro ao seu pai, de que o marido a matricularia em uma universidade quando estivessem em Cabul, isso não aconteceu na prática. “Foram tempos difíceis. A família do meu marido ria de mim e dizia que eu havia sido alfabetizada em outro idioma no Paquistão, e que não haveria possibilidade de eu seguir meus estudos no Afeganistão”, conta.

Diante disso, o pai de Maryan foi até sua casa e exigiu do genro e do próprio irmão que cumprissem a promessa que lhe haviam feito, ressaltando que permitiu o casamento de sua filha apenas sob esta condição.

Ela chegou a entrar na faculdade, mas teve que desistir devido aos afazeres como esposa e mãe. Aos 20 anos de idade, Maryan Kazman teve sua primeira filha, e a segunda nasceu quando ela tinha 24 anos. “Mas, apesar da promessa feita por meu marido ao meu pai, as coisas nem sempre aconteceram como eu queria. Apenas seis anos depois, quando minha filha mais nova estava com dois anos, consegui voltar a estudar e concluir o curso de Odontologia”, relembra.

Maryan se formou em 2020 com ótimas notas e foi a única em toda a universidade que se dedicou à pesquisa na área de Ortodontia, conseguindo publicar um artigo na única revista científica do país. “Ninguém se interessa por pesquisa no Afeganistão. Temos carência de materiais. Levei cerca de um ano para concluir minha pesquisa”, conta.

A ortodontista diz que, em comparação a outros lugares do Afeganistão, a educação em Cabul é considerada de boa qualidade, e em sua classe na faculdade mais da metade dos cerca de 30 alunos eram mulheres. “Antes da volta do domínio talibã, isso não era um problema”, explica.

Maryan Kazman se especializou em Ortodontia e rapidamente foi convidada a dar aulas na mesma universidade em que se formou. Com a volta do Talibã ao controle do país, as mulheres foram novamente proibidas de estudar e ela foi impedida de continuar dando aulas, pois também foi vetado a mulheres lecionar para os homens.

“Mulheres de todas as profissões tiveram que deixar seus empregos, proibidas de trabalhar. Porém, as profissionais da área da saúde, como médicas e dentistas, têm permissão para exercer suas atividades, desde que não atendam pacientes homens, mas eu atendo mesmo assim”, diz Maryan, com seu tom suave, mas corajoso, e um sorriso timidamente traquino.

Ela atende diariamente em seu consultório, onde trata homens e mulheres juntamente com seu marido, que também é cirurgião-dentista e ministra cursos e palestras sobre seus estudos em Ortodontia.

Seu marido e a família dele, que em princípio foram bastante resistentes a Maryan seguir seus estudos, hoje a apoiam e se alegram por ela trabalhar na clínica odontológica.

Maryan Kazman aponta que qualquer determinação do governo talibã começa e termina sobre mulheres, sempre impelindo restrições. “Eles deveriam se ocupar da situação econômica do país, que é muito pobre. As pessoas estão morrendo de fome no Afeganistão”, argumenta a ortodontista, afirmando que tanto ela quanto o marido prestam atendimento odontológico a pessoas carentes, que não têm condições financeiras de arcar com esse tipo de tratamento.

Sem limites na busca por conhecimento

Apesar de todas as dificuldades impostas pelo regime político e religioso de seu país, Maryan nunca deixou de buscar conhecimento, mergulhando em livros, estudos e eventos de educação continuada para se aperfeiçoar profissionalmente. E foi assim quando enfrentou um dos maiores desafios de sua vida, ao decidir participar de um congresso de Ortodontia na Malásia, que teve como um dos palestrantes o professor Celestino Nóbrega, brasileiro que há mais de 20 anos mora nos Estados Unidos.

A saga enfrentada por Maryan para chegar até o evento é digna de roteiros de filmes de drama e ação. “A viagem foi um transtorno do início ao fim”, descreve. Já no aeroporto de Cabul, com passagem e bagagem, ela foi impedida de embarcar pelo fato de ser casada e não estar acompanhada pelo marido ou pelo pai.

Sem se render, ela argumentou com os agentes, perguntando se eles estariam dispostos a pagar pela passagem do marido para acompanhá-la. Questionou, também, como as mulheres que porventura forem sozinhas na vida – sem pai, marido ou irmão – fazem para viajar. A reposta foi de que não há esse tipo de mulher no Afeganistão.

“Argumentei muito com eles, gritei e demonstrei toda a raiva que estava sentindo. Eu havia pago por minhas passagens e iria perdê-las. Quando vi que não haveria solução e que aquela situação poderia me colocar em grande risco, eu saí do aeroporto e peguei um carro até a cidade de Jalalabad, na fronteira com o Paquistão, onde cheguei por volta das 20h”, revela.

A ortodontista quase foi impedida de cruzar a fronteira, mas fingiu ser sobrinha de um idoso que estava no local e aceitou ajudá-la, e disse para o oficial que o suposto tio estava sem visto, mas seu marido estaria do outro lado esperando por ela. “Pedi que deixassem aquele senhor me acompanhar até o outro lado para encontrar meu marido, uma vez que já era noite e eu estava com medo de atravessar sozinha, por ser uma mulher frágil. Mas eu não estava com medo nenhum”, conta, entre risos, como se tivesse feito uma travessura.

Já no Paquistão, Maryan Kazman pegou outro carro até a cidade de Gujramwala, onde dormiu na casa de uma prima. No dia seguinte, bem cedo, foi para a cidade de Lahore, onde chegou no fim da tarde para, então, comprar a passagem de avião para a Malásia. No aeroporto, passou por mais questionamentos, revista de bagagens e quase foi novamente impedida de embarcar. “Eu já não tinha mais forças para brigar”, relata.

Maryan conseguiu embarcar e chegou na Malásia às 6h da manhã do dia seguinte. Assim que chegou, a ortodontista entrou em contato com o organizador do evento do qual ela iria participar, e ele foi até o aeroporto para buscá-la, já que foi informada de que alguém precisaria se responsabilizar por ela no país. “Não tenho palavras para descrever o quão grata me senti. O aeroporto era longe do centro da cidade de Kuala Lumpur e, finalmente, cheguei ao local do evento no meio da tarde”, comemora.

A cirurgiã-dentista conta que, durante os dez dias de congresso, passou por crises de ansiedade e abalo emocional devido a tudo o que havia sofrido para chegar até lá. “Mesmo assim, eu estava me sentindo tão feliz por estar lá e pela forma acolhedora com que todos me receberam, inclusive o Dr. Celestino Nóbrega, que é uma pessoa tão gentil”, relata a ortodontista, que pôde se atualizar em temas relevantes de sua especialidade, como o uso de alinhadores transparentes, ancoragem esquelética, expansão rápida da maxila, mini-implantes e planejamento virtual.

Segundo Maryan, a volta para o Afeganistão foi ainda mais atribulada. Ela chegou no aeroporto de Lahore, no Paquistão, por volta de meia-noite e teria que passar a noite na cidade. Os dois hotéis que procurou não aceitaram hospedá-la pelo fato de estar desacompanhada. Desta forma, a ortodontista teve que ir até a rodoviária e pegar um ônibus para a cidade de Islamabad, onde chegaria cerca de 4h da manhã.

“Aquele foi o único momento em que eu chorei durante toda a viagem. Estava exausta e sozinha. Tentei argumentar com os dois homens que me atenderam nos hotéis, dizendo que eu sou muçulmana como eles, e que eles estariam deixando uma mulher sozinha pela rua no meio da noite, mas eles foram irredutíveis. Entrei em contato com um hotel, onde já havia me hospedado com outros cirurgiões-dentistas anteriormente, em Islamabad, e eles me garantiram que eu poderia ir e que abririam a porta para mim, mesmo de madrugada”, relembra. Ela finalmente pôde descansar e, então, partir de volta de ônibus para Cabul, no Afeganistão.

A luz no fim do túnel

A história de Maryan Kazman chegou até a redação da Sorrisos Brasileiros por meio do cirurgião-dentista Celestino Nóbrega, que ficou muito impactado pela coragem e dedicação de sua colega, que arriscou a própria vida para não abrir mão do direito de exercer a Odontologia.

Professor de Ortodontia na Universidade de Nova York, Nóbrega mora nos Estados Unidos desde 1998 e, além de dar aulas, atua em Pesquisa e Desenvolvimento para uma empresa de tecnologia em inteligência artificial aplicada à Ortodontia.

Ele faz parte de um grupo de estudos asiático, que a cada dois anos realiza o congresso de Odontologia na Malásia, evento que levou Maryan Kazman a enfrentar toda sua saga para participar, e para o qual ele foi convidado como palestrante.

“Na cerimônia de abertura do evento, a Dra. Maryan foi chamada para receber um certificado especial, e eu fiquei interessado em saber o motivo daquela homenagem. Foi quando soube de todo seu esforço para chegar até lá, enfrentando tantas dificuldades e até correndo o risco de perder a vida”, conta.

Nóbrega explica que os organizadores do congresso se sentiram constrangidos pelo fato de Maryan não apenas ter tido problemas para sair do Afeganistão, como também para entrar na Malásia, provavelmente porque as autoridades do Talibã devem ter avisado sobre sua tentativa de sair sozinha de seu país. Isso os motivou a homenageá-la, como um pedido de desculpas pelos transtornos que enfrentou.

Localizada no sudeste asiático, a Malásia é um país que funde as culturas malaia, chinesa, indiana e europeia. Segundo Nóbrega, seus habitantes convivem pacificamente, e não há radicalismo político ou religioso.

“Tive a oportunidade de conhecer e conversar com Maryan em um jantar oferecido pelos organizadores do evento, e fiquei muito impactado por sua determinação. Então, passei a ter o objetivo de ajudá-la em sua carreira profissional”, diz.

Maryan Kazman
Maryan Kazman recebeu o certificado de Celestino Nobrega (à direita).

Através dos contatos que tem nos Estados Unidos, Celestino Nóbrega indicou Maryan para uma bolsa de estudos naquele país, como uma forma de proporcionar a ela um bom desenvolvimento na carreira, assim como a possibilidade de sair do Afeganistão com sua família e viabilizar a continuidade dos estudos de suas filhas, como ela tanto almeja, além de poder viver com mais liberdade.

Celestino Nóbrega escreveu cartas de recomendação para Maryan a duas universidades norte-americanas e, poucos dias antes do fechamento desta edição, ela recebeu o convite da Universidade de Nova York para um mestrado em Saúde Pública.

“A entrevista para meu visto já foi agendada e estou muito ansiosa. Como estou solicitando permissão para levar minha família, isso pode ser um empecilho, mas tenho fé que o melhor vai acontecer”, comemora.

Se antes Maryan Kazman já lutava com muita garra pela liberdade de estudar, trabalhar e proporcionar educação a suas filhas, mesmo sem motivos para ter esperança, essa possibilidade aparece como a luz que buscava no fim desse túnel, que agora ela está muito próxima de atravessar.

Fé e coragem

Em determinado momento, durante a entrevista que concedeu à Sorrisos Brasileiros por videochamada, foi possível ouvir ao fundo o som de uma mesquita, chamando os muçulmanos para uma das orações do dia. Normalmente, nesse momento os religiosos param o que estiverem fazendo, voltam-se para a direção de Meca e se prostram em oração. Perguntada se gostaria de interromper a entrevista, Maryan pediu apenas alguns minutos, fechou os olhos, inclinou levemente a cabeça para baixo e, por cerca de dois a três minutos, permaneceu em oração silenciosa. O gesto inundou o breve momento de uma forte energia de fé, respeito e reverência. Vestindo uma roupa típica do Afeganistão, uma espécie de túnica com tecido leve e colorido, ela tinha o hijab cobrindo os cabelos, mas o rosto à mostra. Lentamente, ela ergueu a cabeça, abriu os olhos e, com muita delicadeza, agradeceu pelo rápido intervalo na entrevista. Na sequência, continuou seu relato de resiliência, persistência, ousadia e coragem.

Um resumo histórico

Na década de 1990, o Afeganistão passava por uma guerra entre as forças governamentais, que tinham apoio das tropas soviéticas, e grupos rebeldes, que contavam com o apoio dos Estados Unidos, Paquistão e Arábia Saudita, entre outros países muçulmanos. As forças rebeldes venceram essa batalha em 1992, mas isso deu início a uma guerra civil entre diversos grupos, culminando com a vitória dos talibãs, que comandaram o Afeganistão até 2001, quando aconteceu o atentado às torres gêmeas. Na ocasião, os Estados Unidos invadiram o país, levando ajuda militar e econômica, e fortalecendo a nova República do Afeganistão. Mas, isso não fez com que os conflitos contra os insurgentes talibãs cessassem. Em 2020, com a retirada das tropas norte-americanas do país, o Talibã retomou o controle do Afeganistão, levando o governo central ao colapso, impondo novamente o regime totalitário ao qual o país está submetido atualmente.