A Sorrisos Brasileiros ouviu duas especialistas em Direito com foco na esfera odontológica para entender o que determinou número de processos contra dentistas e como se precaver para, ao menos, diminuir o impacto de uma ação movida por um paciente.
Por Leandro Duarte
Dos consultórios odontológicos aos tribunais. Este tem sido um caminho cada vez mais comum para os cirurgiõesdentistas, já que o número de processos na esfera judicial civil movidos por pacientes contra profissionais da Odontologia apresenta um importante crescimento no Brasil. De acordo com dados do Conselho Nacional de Justiça, 2023 alcançou o recorde de ações dessa natureza. Se em 2022 foram mais de 44 mil processos, em outubro do ano passado o acumulado de ações havia passado de 49 mil.
O ranking de procedimentos da Odontologia com um maior número de pessoas buscando indenização por supostas imprudências ou insatisfação com o resultado é liderado pela Implantodontia, seguido por Harmonização Orofacial, Prótese Dentária e Ortodontia. Esses dados foram colhidos por Rafaela Garmes, cirurgiã-dentista que se especializou em Odontologia Legal pela Forp/USP, além de ter concluído o mestrado em Direito Constitucional na ITE Bauru.
Ao ser perguntada se era possível apontar um vilão por essa escalada no aumento de ações judiciais contra cirurgiõesdentistas, a especialista foi taxativa. “As redes sociais e o Google. Os pacientes tendo acesso a essas informações e criando suas expectativas de resultado são os pontos negativos. A expectativa de resultado é a pior coisa que poderia acontecer para um profissional da Odontologia. Por mais que o tratamento seja bom, se não aparentar o resultado maravilhoso do post, o paciente estará insatisfeito. E a insatisfação gera o processo”, afirma Rafaela, que ainda acrescenta o incentivo gerado pela Justiça gratuita. “É fácil processar porque a pessoa não precisa pagar se perder o processo. Ela não tem nada a perder”.
O temor na classe odontológica é grande e as dúvidas são as recorrentes: o que é preciso para o profissional se resguardar? Como se defender? Rafaela Garmes aponta uma falha grave cometida pela maioria dos cirurgiões-dentistas: a documentação. “Assim como existem os “advogados de porta de cadeia”, há também os de “porta de clínica”. É fácil processar um cirurgiãodentista, já que, geralmente, são profissionais que não têm documentos que o defendam, não contam com conhecimento legal e mal conhecem o Código de Defesa do Consumidor. Afinal de contas, somos também prestadores de serviços”, reforça.
Rafaela Garmes revela que sempre deixa claro dois posicionamentos para os cirurgiões-dentistas que procuram ajuda. “Se o profissional tentar um acordo extrajudicial, é um custo. Mas, se for para um processo, a questão maior é o valor. Até você provar que está certo e ser restituído, pode demorar de dois a três anos, na maioria das vezes. E são valores impactantes, de R$ 40 mil a R$ 210 mil. Daí, a importância do seguro de responsabilidade civil”, orienta a profissional, deixando claro que a apólice precisa ser contratada junto a uma segurada adequada e que se enquadre na questão de procedimentos e colaboradores da clínica.
Equívocos do marketing abrem muitas brechas para processos
A cirurgiã-dentista Soraya Monteiro Fernandez é especialista em Odontologia Legal, mestranda em Biologia Bucodental com área de concentração em Odontologia Legal e Deontologia, e professora de Odontologia Legal para especializações de Ortodontia e CTBMF em diversas instituições. A profissional, que também contribuiu com a classe como presidente da Câmara Técnica de Odontologia Legal do Crosp, de 2019 a 2021, dá mais dicas de como evitar problemas com a Justiça.
“O grande problema do marketing é que as pessoas não leem o Código de Ética Odontológica. Lá fala, por exemplo, sobre as autopromoções, promoções, brindes, formas de pagamento, o que pode e o que não pode ser colocado nas mídias, e rege sobre os direitos e deveres do cirurgião-dentista. É um manual com todas as informações necessárias, mas o próprio profissional da Odontologia parece não fazer questão nenhuma de ler. E assim surgem as infrações éticas, as denúncias e os processos”, lamenta.
Com vasta experiência, sendo ela membro da Comissão de Direitos Médicos e da Saúde da OAB/SP, Soraya Fernandez explica quais são as atribuições do Conselho Federal de Odontologia (CFO) e dos conselhos regionais na fiscalização, punição e discussões sobre atualizações da parte legal. “O CFO lida diretamente com a legislação, através das resoluções, portarias e decisões, e os CROs se responsabilizam pela fiscalização e pelo dia a dia profissional dos inscritos. Cada estado tem o seu e, se o profissional infringir o que está na lei, será multado. Muitos cirurgiões-dentistas não entendem isso. Acham que, por pagarem o CRO, podem fazer o que quiserem. Em vez de procurarem o CRO para solicitar uma consultoria, preferem ignorar a lei, as resoluções e o Código de Ética Odontológica”, critica.
De acordo com a especialista, os últimos quatro anos mostram uma mistura do que ela aponta como uma população muito mais informada, muitas vezes até com “má fé”, e a “não importância” do profissional com a lei da Odontologia, que é federal (5081/66). “Os cirurgiõesdentistas reclamam que a legislação está ultrapassada, mas trata-se da lei que nos rege”, ensina a professora, que lamenta o fato das pessoas, entre pacientes e profissionais, só se lembrarem que têm direitos, mas se esquecerem de seus deveres.
Melhor caminho para estar sempre pronto a uma ordem judicial
Antes de falarmos sobre a consolidação dessa documentação que deixaria o cirurgião-dentista mais protegido, se faz necessário entender o mecanismo processual em diversos aspectos e situações. Mais do que isso: passar c onhecimento ao paciente é uma prerrogativa constitucional no sentido de reduzir as desigualdades materiais, segundo a especialista Rafaela Garmes. “O cirurgião-dentista possui um conhecimento que o paciente não tem. Quando pensamos em Constituição Federal, não há nada acima dela. Então, precisamos levar isso para o consultório, quando o documento que melhor sintetiza essa premissa é o termo de consentimento livre e esclarecido ( TCLE)”, destaca.
Outro ponto importante nesse sentido, segundo Rafaela, diz respeito ao que se chama de responsabilidade objetiva. “Quando pensamos em processar uma clínica odontológica, falamos em responsabilidade objetiva, mais favorável em termos de provas e valor da indenização para o paciente. Afinal, é muito mais fácil o advogado entrar com um processo contra o CNPJ do que contra a pessoa física. Por isso, os gestores devem fazer um contrato com o colaborador (no caso, o cirurgião-dentista) para dividir responsabilidades”, orienta.
Direito preventivo
Com o intuito de auxiliar os cirurgiões-dentistas que ainda pecam na produção de documentos em seus procedimentos, as especialistas Soraya Fernandez e Rafaela Garmes deram dicas para minimizar os problemas judiciais. “Se o profissional não pedir os exames complementares necessários para determinado procedimento, terá sido negligente. Nós temos, em artigos científicos comprovados, que a anamnese deve ser refeita anualmente porque há mudanças sistemáticas que ocorrem a cada ano. Ponto principal da anamnese: o que você veio fazer no consultório? O que você espera do tratamento? O que você deseja desse tratamento? Isso porque, em função das respostas, o profissional tem como dizer que a expectativa criada por um anúncio de rede social não será alcançada ou que só pode chegar até certo ponto. É sobre comprovar cada etapa”, ensina Rafaela, reforçando ainda que o profissional precisa apresentar duas opções de planos de tratamento, com escolha a cargo do paciente.
Soraya, por sua vez, ressalta que o cirurgião-dentista precisa ter um prontuário mais completo, com informações da anamnese, ficha de tratamento, contrato de prestação de serviço, termo de consentimento livre e esclarecido, radiografia panorâmica inicial (periapicais no decorrer do tratamento, se for necessário) e radiografia panorâmica final. Sobre o contrato, Rafaela acrescenta um ponto importante: pactuação de acordo financeiro entre as partes com cláusula de rescisão contratual para ambos, além da contratação de um seguro de responsabilidade civil.
Por fim, segue o aviso para uma classe que se vê cada vez mais em uma disputa entre concorrentes: é proibido realizar laudos condenando o colega. “Há muitas pessoas que entram com processo porque outro cirurgião-dentista disse que o procedimento foi feito de maneira inadequada. Não é incomum descobrir que foi o próprio profissional quem incentivou o paciente a entrar com a ação contra o colega. Há até uma estatística: de 100 perícias, 90 mostraram essa situação. A classe está desunida e isso não traz qualquer benefício”, finalizou Rafaela.